12 de abr. de 2009

Manifesto do Futurismo


1. Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e da temeridade.

2. A coragem, a audácia, a rebelião serão elementos essenciais de nossa poesia.

3. A literatura exaltou até hoje a imobilidade pensativa, o extase, o sono. Nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo de corrida, o salto mortal, o bofetão e o soco.

4. Nós afirmamos que a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que correr sobre a metralha, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia.

5. Nós queremos entoar hinos ao homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada também numa corrida sobre o circuito da sua órbita.

6. É preciso que o poeta prodigalize com ardor, fausto e munificiência, para aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais.

7. Não há mais beleza, a não ser na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças desconhecidas, para obrigá-las a prostar-se diante do homem.

8. Nós estamos no promontório extremo dos séculos!... Por que haveríamos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós já estamos vivendo no absoluto, pois já criamos a eterna velocidade onipresente.

9. Nós queremos glorificar a guerra - única higiene do mundo - o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas idéias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher.

10. Nós queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academia de toda natureza, e combater o moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária.

11. Nós cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela sublevação; cantaremos as marés multicores e polifônicas das revoluções nas capitais modernas; cantaremos o vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas elétricas; as estações esganadas, devoradoras de serpentes que fumam; as oficinas penduradas às nuvens pelos fios contorcidos de suas fumaças; as pontes, semelhantes a ginastas gigantes que cavalgam os rios, faiscantes ao sol com um luzir de facas; os piróscafos aventurosos que farejam o horizonte, as locomotivas de largo peito, que pateiam sobre os trilhos, como enormes cavalos de aço enleados de carros; e o voo rasante dos aviões, cuja hélice freme ao vento, como uma bandeira, e parece aplaudir como uma multidão entusiasta.

um artigo muito relevante para os estudos sobre Fernando Pessoa

Batista de Lima

Quatro Personalidades Pessoanas


Fernando Pessoa não só criou seus heterônimos como estabeleceu para cada um deles, uma biografia própria. É através destas biografias que podemos verificar quão diferentes eles se apresentam.

Fernando Pessoa
(O Ortônimo)

"Há sem dúvida quem ame o infinito."

Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu às 3 horas da tarde do dia 13 de junho de 1888, no 4º andar de um prédio do Largo de São Carlos em Lisboa. Faleceu no dia 30 de novembro de 1935 no hospital de São Luís em Lisboa, acometido de perturbações hepáticas.


O ortônimo escreveu Mensagem, em 1935, onde se revela nacionalista místico. Também escreveu. Quinto Império, onde transparece seu sonho sebastianista e monarquista. Escreveu ainda: Cancioneiro, onde se apresenta lírico e desencantado; Poemas Dramáticos; e 35 Sonnets, onde se revela ocultista, abúlico, amante do mistério.


Através da poética, revela-se dialético, ao exercer, ao exercer a intelectualização da sensação; paúlico, quando trabalha um simbolismo lúcido e consciente, um passo à frente do saudosismo; interseccionista, quando aperfeiçoa mais o simbolismo através da subjetividade excessiva, da síntese elevada ao máximo e através do exagero da atitude estática e da mescla de sensações; lúcido, e angustiado por ser lúcido; e Platônico: Cultivador do vago, do complexo e do sutil. Mais que os heterônimos, o ortônimo tem uma atitude perspicaz de ver as coisas.

Também tende para o gosto pelo que é maneirista, conceptista, pelo uso do paradoxo, daí apresentar-se tradicional e moderno ao mesmo tempo.


Segundo o Professor Linhares Filho, as duas principais características da sua modernidade seriam: a consciência do fazer artístico e a prevalência do apolíneo sobre o dionisíaco, no elaborar-se poético.


Sensacionista, o ortônimo nos mostra como sentir a paisagem, pois, para ele, todo objetivo é uma sensação nossa, toda arte é conversão da sensação em objeto, toda arte é conversão da sensação em sensação.


O próprio Pessoa apresenta cinco condições ou qualidades para entender os símbolos do ortônimo: a simpatia, a intuição, a inteligência, a compreensão e a graça. Depois conclui que:


"Todo estado de alma é uma paisagem. 
Uma tristeza é um lago morto dentro de nós.  
Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior 
e do nosso espírito, e sendo nosso espírito uma paisagem, 
temos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens."
 

Como se vê, um espírito tão rico e até paradoxal como o de Pessoa não podia se resumir numa só personalidade. Daí o surgimento de muitos heterônimos, principalmente o de Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos.


Ricardo Reis
"Há sem dúvida quem deseja o impossível."

Ricardo Reis nasceu em Lisboa, às 11 horas da noite do dia 28 de janeiro de 1914. Foi discípulo de Alberto Caeiro, de quem adquiriu a lição de paganismo espontâneo. Há informação dando conta de que teria embarcado para o Brasil em 12 de outubro de 1919. Em Ricardo Reis,

"Há a renúncia de quem atingiu 
os píncaros da humana lucidez 
e abstrai seus conceitos de impermanência e símbolos 
da contemplação voluntária de uma natureza 
quem o homem iguala 
à essencialidade ideal que lhe basta"

Esse heterônimo pessoano, numa arte poética particularmente sua, procurou sempre o mais alto, o impossível até, para encrustar uma poesia refinada, concisa, elíptica, cunhada em linguagem esmerada e com vocabulário algo alatinado. São antológicas, suas modernizadas odes horacianas: "Lídia", "Coroai-me de Rosas", "O mar Jaz" e "Sábio é o que se Contenta", todas de 1914. De 1916 são mercantes: "Não a Ti, Cristo" e "Não a Ti, Cristo, Odeio...". Nestas odes, prevalece o apolíneo comprovado por uma moderna consciência do fazer artístico. Muitas delas apareceram primeiramente publicadas na revista Athena e, principalmente, na Presença, sempre indiferentes ao social, mas acentuadamente consciente da efemeridade da vida.


Reis leva o paganismo de Caeiro à sua expressão mais ortodoxa, através de um neoclassicismo neo-pagão consciente, cultivando a mitologia greco-latina. Clássico por excelência, idealista e platônico no amor, constata o efêmero da vida e anseia, no íntimo, por uma fenomenológica eternidade terrena.


Segundo Linhares Filho, sob a perspectiva do ser, pode-se dizer que Ricardo Reis ama o impossível, mas sob a perspectiva do "Parecer", ele

"ama o infinito porque mais do que todos 
se apega à vida, desejando-a infinda, 
sob a simulação de resignar-se com a transitoriedade."

Como se observa, amando o impossível ou o infinito, Ricardo Reis sempre procurou os píncaros, como a fugir (fingindo) de uma realidade terrena que verdadeiramente queria viver, eternamente.

Alberto Caeiro
"Há sem dúvida quem não queira nada."

Alberto Caeiro da Silva nasceu em Lisboa, em abril de 1889, e na mesma cidade faleceu, tuberculose, em 1915. Passou quase a vida inteira numa quinta de Ribatejo. Lá escreveu O Guardador de Rebanhos e uma parte de O Pastor Amoroso, que não foi completado. No mesmo local, escreveu ainda alguns poemas de Poemas Inconjuntos, vindo este a se completar já em Lisboa, quando lá o autor voltou, já no final da vida. Aliás, da vida de Caeiro não há o que narrar; sua vida e seus poemas se confundem.


Simples, Caeiro parte do zero, quando regressa a um primitivismo do conhecimento da natureza. Mestre de Ricardo Reis e Álvaro de Campos, a eles ensinou a filosofia do não filosofar, a aprendizagem do desaprender. Compôs uma poética da contemplação, hiperbólica, de linguagem espontânea, discursiva, e prosaica, por extirpar do texto, ao máximo, a conotação tradicional. Considerando o mais contraditório dos heterônimos, atinge o poético pelo apoético, ou seja, conota quando denota, já que usa o inusitado.


Este heterônimo pessoano, diante da possibilidade de se infelicitar com o sol, os prados e as flores que contetam com sua grandeza, procura minimizá-los, comparando-os com eles próprios. Nessa redução do mundo, fica mais latente o "nada". Daí ser ele o heterônimo que nada quer. Mesmo assim, enquanto tenta provar que não intelectualiza nada, é que mais intelectualiza entre as personalidades pessoanas, parece usar o raciocínio sem querer demonstrar isso. Daí ser o mais infeliz, por restringir o mundo, além de fugir do progresso e a ele renunciar.


Caeiro faz uma poesia da natureza, uma poesia dos sentidos, das sensações puras e simples. Foi por isso que procurou, na serra, sentir as coisas simples da vida com maior intensidade.


Sendo o mais intelectualizado entre as personalidades pessoanas, Caeiro foi o que menos se preocupou com o trabalho formal do poema. Daí o comentário crítico do seu discípulo Ricardo Reis:

"Falta nos poemas de Caeiro 
aquilo que deveria completá-los a disciplina exterior. 
Não subordinou a expressão 
à uma disciplina comparável àquela a que subordinou, 
quase sempre, a emoção e sempre, a idéia."

Como afirma Reis Caeiro, sem muitas preocupações formais, foi o filósofo das personalidades pessoanas. Mesmo o tempo todo não querendo nada e trabalhando o lado mais simples da linguagem, a denotação, conseguiu, de maneira surpreendente, elaborar um inusitado monumento poético.

Álvaro de Campos

"Três tipos de idealistas e eu nenhum deles."

Álvaro de Campos nasceu em 15 de outubro de 1889. Engenheiro, inquieto e sensacionista, representa a parte mais audaciosa a que Pessoa se permitiu, através das experiências mais barulhentas do futurismo português, inclusive com algumas investidas no campo da ação político-social.


Para tanto, fez a adoção do cotidiano através do versilibrismo, integrando-se à civilização da máquina com o dinamismo e a inquietude do pós-guerra (la guerra). Essa atitude comprova a sua consciência moderna do fazer artístico, preocupada com o existencial, e, principalmente, com o aproveitamento do que é possível de se extrair da emoção.


A trajetória poética de Álvaro de Campos está compreendida em três fases. A primeira, da morbidez e do torpor, é a fase do "Opiário", oferecido a Mário de Sá-Carneiro e escrito enquanto navegava pelo Canal do Suez, em março de 1914. A segunda fase, mais mecanicista e Whitmaniana, é onde o Futurismo italiano mais transparece num aclimatamento em terras de Portugal. Nessa fase, Campos seria,

"Um Whitman com um poeta grego dentro.  
Pois Pessoa o coloca numa dupla seqüência: 
a de uma arte orientada pelo ideal grego 
e a dos cantores de hinos a civilização moderna 
e sensações por ela provocadas."

É nessa fase onde a sensação é mais intelectualizada. A terceira fase, do sono e do cansaço, aquela que, apesar de trazer alguma coloração surrealista e dionisíaca, é mais moderna e equilibrada se apresenta. É nessa fase em que se enquadram: "Lisbon Revisited" (l923), "Apontamento", "Poema em Linha Reta" e "Aniversário", que trazem, respectivamente, como características, o inconformismo, a consciência da fragilidade humana, o desprezo ao suposto mito do heroísmo e o enternecimento memorialista.


O que se constata, finalmente, é que Álvaro de Campos, a despeito de intelectualizar as sensações e apresentar laivos surrealistas, é a personalidade pessoana que mais se aproximou de uma poesia realista, e, também, quem mais foi marcado pelos caracteres da modernidade.

Uma "entrevista" muito interessante!!

Fernando Pessoa,
uma colagem de
Rodrigo Souza Leão

Começo pedindo perdão aos puristas. Meu objetivo não foi escrever o currículo de Fernando Pessoa, como sempre ocorre, nas linhas de abertura da entrevista. Todos o conhecem. Dito isto...

Em 1888 nasce Fernando Antônio Nogueira Pessoa, em 13 de junho, no Largo de São Carlos, Lisboa. Com sete anos escreve o seu primeiro poema, intitulado À Minha Querida Mamã. Desta data até 1935, no dia 30 de novembro, quando vem a falecer; Fernando Pessoa ergue a sua obra literária. Em vida publicou apenas Mensagem, com o qual ficou em segundo lugar num concurso literário. Sua última frase escrita foi: "I know not what tomorrow will bring".

Rodrigo Souza Leão



Quem é a pessoa atrás do Pessoa?

Nesta vida em que sou meu sono,
Não sou meu dono,
Quem sou é quem me ignoro e vive
Através dessa névoa que sou eu
Todas as vidas que eu outrora tive,
Numa só vida.

Álvaro de Campos


Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.

Ricardo Reis


Se as coisas são estilhaços
Do saber do universo,
Seja eu os meus pedaços,
Impreciso e diverso.
Eles foram e não foram.

Fernando Pessoa

Como é o seu processo criativo?

As vezes tenho idéias felizes,
Idéias subitamente felizes, em idéias
E
nas palavras em que naturalmente se despegam...
Depois de escrever, leio...
Por que escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Seremos nós nesse mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...

Álvaro de Campos


Não me importo com às rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de
exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior

Alberto Caeiro

O que os deuses querem de um homem como Fernando Pessoa?

Queriam-me casado, cotidiano, fútil e tributável?
Queriam-me o contrário disso, o contrário de qualquer [coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!

Álvaro de Campos

O senhor acredita em Deus?

Às vezes sou o Deus que trago em mim
E
então eu sou o Deus, o crente e a prece
E a imagem de marfim
Em que esse Deus se esquece.

Às vezes não sou mais que um ateu
Desse Deus meu que eu sou quando me exalto.
Olho em mim todo um céu
E é um mero oco céu alto.

[Novas Poesias Inéditas]

O senhor tem um lado zen. O que é pensar no nada?

Pensar em nada
é ter a alma própria e inteira.
Pensar em nada
É viver intimamente
O fluxo e o refluxo da vida.

Álvaro de Campos

O senhor é/foi maluco beleza?

Fui doido e tudo por Deus.
Só a loucura incompreendida
Vai avante para os céus.



Só a loucura é que é grande!
E só ela é que é feliz!

[Poemas Dramáticos
Primeiro Fausto]

Existe algum mistério no Universo?

O único mistério do Universo é o mais e não o menos.
Percebemos demais as cousas — eis o erro, a dúvida.
O que existe transcende para mim o que julgo que existe.

A Realidade é apenas real e não pensada.

Alberto Caeiro

O principal desejo do poeta é a eternidade?

ama o infinito porque mais do que todos
se apega à vida, desejando-a infinda,
sob a simulação de resignar-se com a transitoriedade.

O Senhor é saudosista?

Eu amo tudo que foi,
Tudo que já não é,
A dor que já não me dói.
A antiga e a errônea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi e voou
E hoje é já outro dia.

[Poesias Coligadas/inéditas]


Saudades, só portugueses
Conseguem senti-las bem
Porque têm essa palavra
Para dizer que as têm

[Quadras ao gosto popular]

O senhor é um sábio?

Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo,
E ao beber nem recorda
Que já bebeu na vida,
Para quem tudo é novo
E imarcescível sempre.

Ricardo Reis

Como definiria a VIDA neste mundo de meu Deus?

A vida é um hospital
Onde quase tudo falta.
Por isso ninguém se cura
E morrer é que é ter alta.

[Quadras ao gosto popular]

Quem é o poeta? O que busca na poesia?

O poeta é um fingidor,
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

Fernando Pessoa


Ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho

Alberto Caeiro

Tem algum mote que o acompanhe?

"Tudo vale a pena quando a alma não é pequena."

Fernando Pessoa

Qual o conselho pode dar aos jovens de espírito?

Segue o teu destino,
Rega a tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Ricardo Reis

11 de abr. de 2009

mais alguns poemas de Bocage

Já sobre o coche de ébano estrelado,
Deu meio giro a Noite escura e feia,
Que profundo silêncio me rodeia
Neste deserto bosque, à luz vedado!

Jaz entre as folhas Zéfiro abafado,
O Tejo adormeceu na lisa areia;
Nem o mavioso rouxinol gorjeia,
Nem pia o mocho, às trevas acostumado.

Só eu velo, só eu, pedindo à Sorte
Que o fio com que está mih'alma presa
À vil matéria lânguida, me corte.

Consola-me este horror, esta tristeza,
Porque a meus olhos se afigura a Morte
No silêncio total da Natureza.
______


Das terras a pior tu és, ó Goa,
Tu pareces mais ermo que cidade,
Mas alojas em ti maior vaidade
Que Londres, que Paris ou que Lisboa.

A chusma de teus íncolas pregoa
Que excede o Grão Senhor na qualidade;
Tudo quer senhoria; o próprio frade
Alega, para tê-la, o jus da c'roa!

De timbres prenhe estás; mas oiro e prata
Em cruzes, com que dantes te benzias,
Foge a teus infanções de bolsa chata.

Oh que feliz e esplêndida serias,
Se algum fusco Merlim, que faz bagata,
Te alborcasse a pardaus as senhorias!

_____

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co'o sacrílego gigante.

Como tu, junto ao Ganges sussurante,
Da penúria cruel no horror me vejo.
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és, mas . . . oh, tristeza! . . .
Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.

_____



Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;


Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno;


Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades;


Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.

Aos sócios da "Nova Arcádia"

Vós, ó Franças, Semedos, Quintanilhas,
Macedos e outras pestes condenadas;
Vós, de cujas buzinas penduradas
Tremem de Jove as melindrosas filhas;

Vós, néscios, que mamais das vis quadrilhas
Do baixo vulgo insossas gargalhadas,
Por versos maus, por trovas aleijadas,
De que engenhais as vossas maravilhas,

Deixai Elmano, que, inocente e honrado
Nunca de vós se lembra, meditando
Em coisas sérias, de mais alto estado.

E se quereis, os olhos alongando,
Ei-lo! Vede-o no Pindo recostado,
De perna erguida sobre vós mijando.

Meu ser evaporei na luta insana

Do tropel de paixões que me arrastava:

Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava

Em mim quasi imortal a essência humana!


De que inúmeros sóis a mente ufana

Existência falaz me não dourava!

Mas eis sucumbe Natureza escrava

Ao mal, que a vida em sua origem dana.


Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!

Esta alma, que sedenta em si não coube,

No abismo vos sumiu dos desenganos



Deus, ó Deus!... quando a morte a luz me roube,

Ganhe um momento o que perderam anos,

Saiba morrer o que viver não soube.


_____

Sobre estas duras, cavernosas fragas,

Que o marinho furor vai carcomendo,

Me estão negras paixões n'alma fervendo

Como fervem no pego as crespas vagas.



Razão feroz, o coração me indagas,

De meus erros e sombra esclarecendo,

E vás nele (ai de mim!) palpando, e vendo

De agudas ânsias venenosas chagas.


Cego a meus males, surdo a teu reclamo,

Mil objectos de horror co'a ideia eu corro,

Solto gemidos, lágrimas derramo.


Razão, de que me serve o teu socorro?

Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo;

Dizes-me que sossegue: eu peno, eu morro.




8 de abr. de 2009

À MINHA MUSA
teixeira de pascoaes

Senhora da manhã vitoriosa
E também do crepúsculo vencido.
Ó senhora da noite misteriosa,
Por quem ando, nas trevas, confundido.

Perfil de luz! Imagem religiosa!
Ó dor e amor! Ó sol e luar dorido!
Corpo, que é alma escrava e dolorosa,
Alma, que é corpo livre e redimido.

Mulher perfeita em sonho e realidade.
Aparicão Divina da Saudade...
Ó Eva, toda em flor e deslumbrada!

Casamento da lágrima e do riso;
O céu e a terra, o inferno e o paraíso,
Beijo rezado e oração beijada.
A NEGRA
Costa Alegre

Negra gentil, carvão mimoso e lindo
Donde o diamante sai,
Filha do sol, estrela requeimada,
Pelo calor do Pai,

Encosta o rosto, cândido e formoso,
Aqui no peito meu,
Dorme, donzela, rola abandonada,
Porque te velo eu.

Não chores mais, criança, enxuga o pranto,
Sorri-te para mim,
Deixa-me ver as pérolas brilhantes,
Os dentes de marfim.

No teu divino seio existe oculta
Mal sabes quanta luz,
Que absorve a tua escurecida pele,
Que tanto me seduz.

Eu gosto de te ver a negra e meiga
E acetinada cor,
Porque me lembro, ó Pomba, que és queimada
Pelas chamas do amor;

Que outrora foste neve e amaste um lírio,
Pálida flor do vale,
Fugiu-te o lírio: um triste amor queimou-te
O seio virginal.

Não chores mais, criança, a quem eu amo,
Ó lindo querubim,
O amor é como a rosa, porque vive
No campo, ou no jardim.

Tu tens o meu amor ardente, e basta
Para seres feliz;
Ama a violeta que a violeta adora-te
Esquece a flor-de-lis.
NEGRA!
Cordeiro da Mata

Negra! negra! como a noite
d'uma horrível tempestade,
mas, linda, mimosa e bella,
como a mais gentil beldade!
Negra! negra! como a asa
do corvo mais negro e escuro,
mas, tendo nos claros olhos,
o olhar mais límpido e puro!

Negra! negra! como o ébano,
seductora como Phedra,
possuindo as celsas formas,
em que a boa graça medra!
Negra! negra!... mas tão linda
co'os seus dentes de marfim;

que quando os lábios entreabre,
não sei o que sinto em mim!...

II

Só, negra, como te vejo,
eu sinto nos seios d'alma
arder-me forte desejo,
desejo que nada acalma.
se te roubou este clima
do homem a cor primeva;
branca que ao mundo viesses,
serias das filhas d'Eva
em belleza, ó negra, a prima!...
gerou-te em agro torrão;
S'elevar-te ao sexo frágil
temeu o rei da criação;
é qu'és, ó negra creatura,
a deusa da formosura!...