AUTO DA ALMA
Auto da Alma: O Papel da Igreja na Trajetória da Alma
Elaborado por: Flávio Monteiro, Helena Nunes, Raquel Lisaldo, Telma Tosta / 2006.1
Contexto Histórico:
O Humanismo situa-se na transição da Idade Média para a Renascença, momento em
que o homem reavalia seus conceitos e valores. Ocorre nessa época a passagem do
pensamento teocêntrico, voltado aos assuntos divinos e celestiais, para o pensamento
antropocêntrico, voltado aos valores humanos.
Aconteceram nesse período relevantes transformações socias e econômicas. O
homem torna-se menos dependente de Deus, valoriza o conhecimento humano e sua
capacidade criativa.
Com o declínio do feudalismo, o poder dos reis aumenta. A burguesia encontra-se em
plena ascendência. As grandes navegações fazem com que os países europeus acumulem
riquezas retiradas das novas terras descobertas. Portugal torna-se uma das grandes
potências das viagens ultramarinas.
Gil Vicente:
É o principal nome da literatura dessa época. Sua obra possui um caráter moralizante,
na intenção de reforma social, de restabelecimento dos valores. Gil Vicente é crítico e
eticamente preocupado com os vícios nascidos da nova realidade econômica de Portugal.
A sua obra representa o encontro da herança medieval, sobretudo nos gêneros e na
medida poética (utiliza sistematicamente a métrica popular, em autos e farsas), com o
espírito renascentista de exercício crítico e de denúncia das irregularidades institucionais e
dos vícios da sociedade.
Papel da Igreja no Auto da Alma:
Não é um fato inédito, ou que cause estranheza para a humanidade , o controle do
povo através do temor à Deus e da fé.Gil Vicente também explorou essas vertentes em
seus Autos.
O trabalho de Gil Vicente no “Auto da Alma” converte-se num alerta às almas
“desavisadas” ou “desvirtuadas”, sobre os perigos e as tentações materiais e carnais (na voz
do Diabo), que se devem desviar e combater. A virtude do sacrifício é colocada como
essencial para a preservação, a purificação e a santificação da alma humana, conforme
revelam as falas dos santos e do anjo Custódio:
AUTO DA ALMA
ANJO Alma humana, formada
(...)
Um ponto não esteis parada,
que a jornada
muito em breve é fenecida,
se atentais.
Cabe agora à igreja e aos seus doutores a função de iluminar a alma, até aí
manifestamente obscurecida e contaminada pelo mundo. Assim, a igreja é instituída como
meio, instrumento de salvação das Almas
Em uma das falas de Agostinho, aparece uma espécie de permissão e de alerta à
necessidade de que a Igreja interceda, proteja e cuide para que as almas se mantenham no
caminho reto da virtude, seguindo o projeto divino.
Pode-se perceber, ainda, a colocação da Igreja como “porta-voz oficial” da vontade
de Deus. O exemplo de Cristo aparece invocado também como um chamado ao dever e à
responsabilidade do homem de levar a vida segundo os ensinamentos cristãos.
Concomitante a isso, o Auto da Alma pode ser encarado como um apelo às “almas” para
que morram em nome da propagação da fé, que vivam de forma humilde, pensando na
coletividade e não apenas em si – como ditava o ideal expansionista por excelência, vigente
na época em Portugal - entre outros procedimentos que Cristo adotou quando na terra,
conforme a doutrina católica. Mais adiante, na fala de Agostinho ,a Igreja é eleita a “santa
estalajadeira”, um porto seguro , um abrigo e a “curandeira das mazelas das almas em seus
destinos terrenos”, reiterando a posição paternal do Padre e maternal , dela própria. A
figura do Anjo aparece também, na posição de guia e protetor da Alma , designado por
Deus, como anjo da guarda: uma espécie de “zelador material” das almas fracas e
vacilantes:
A Sua mortal empresa
foi santa estalajadeira
Igreja Madre:
consolar à sua despesa,
nesta mesa,
qualquer alma caminheira,
com o Padre
e o Anjo Custódio aio.
Alma que lhe é encomendada,
se enfraquece
e lhe vai tomando raio
de desmaio,
se chegando a esta pousada,
se guarece.
Mais adiante, a própria alma, parece “passar uma procuração oficial para a Igreja”,
clamando para ser velada e guardada das tentações terrenas, tornando quase legitimo o
constante trabalho de vigilância e de doutrina desenvolvidos pelos nomeados “emissários
da fé” - a Igreja, o Rei, Gil Vicente- configurados como seus auxiliares, uma vez que
estariam zelando pelas salvações das almas:
AUTO DA ALMA
ALMA Anjo que sois minha guarda,
olhai por minha fraqueza
terreal!
de toda a parte haja resguarda,
que não arda
a minha preciosa riqueza
principal.
Cercai-me sempre ò redor
porque vou mui temerosa
de contenda.
Ó precioso defensor
meu favor!
Vossa espada lumiosa
me defenda!
Tende sempre mão em mim,
porque hei medo de empeçar,
e de cair
A todo momento em “O Auto da Alma”, o Anjo tenta manter a alma em um percurso
retilíneo, simbolizado pela correção, de modo que o papel do Anjo, mais uma vez, remete
ao papel atribuído à Igreja : o de resgate, salvação e aconselhamento das almas.
Um refúgio é alcançado pela alma na Santa Madre Igreja. Lá, ela manifesta seu
arrependimento, busca o perdão dos seus pecados, e obtém a salvação pela confissão e pela
penitência da “mais pura e sagrada iguaria” – que é a hóstia - e através do perdão de Deus
concedido pela Santa Igreja:
ANJO Vedes aqui a pousada
verdadeira e mui segura
a quem quer vida.
IGREJA Oh! Como vindes cansada
e carregada!
(...)
ALMA Não sei pera onde vou;
sou selvagem,
sou uma alma que pecou
culpas mortais
(...)
Conheço-me por culpada,
e digo diante vós
minha culpa.
Senhora, quero pousada,
dai passada,
pois que padeceu por nós
quem nos desculpa.
(...)
IGREJA Vinde-vos aqui assentar
mui devagar
que os manjares são guisados
por Deus Padre.
(...)
Pois que Deus a trouxe aqui,
não pereça.
AUTO DA ALMA
Conclusão:
A função da Igreja na trajetória da alma tem em vista a purificação do homem, que
corrompido se afasta de Deus. Cabe à Igreja proteger e cuidar para que a alma não faça o
caminho inverso ao da salvação. A Igreja direciona o homem dizendo o que é lícito,
impondo valores, moralizando e domesticando. A mesma tem, não somente a função de
“iluminar” a alma pecaminosa a fim de que se converta ao “bom caminho” resistindo assim
às tentações carnais e materiais presentes nesse mundo, como também o poder de conceder
perdão das falhas cometidas, levando o homem a um estado de purificação. É mister que a
alma almeje as glórias do porvir e não as desse mundo, visão que se relaciona com a idéia
do sacrifício, tantas vezes reiterada no trabalho Vicentino do Auto da Alma.
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