12 de abr. de 2009

Manifesto do Futurismo


1. Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito da energia e da temeridade.

2. A coragem, a audácia, a rebelião serão elementos essenciais de nossa poesia.

3. A literatura exaltou até hoje a imobilidade pensativa, o extase, o sono. Nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, o passo de corrida, o salto mortal, o bofetão e o soco.

4. Nós afirmamos que a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que correr sobre a metralha, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia.

5. Nós queremos entoar hinos ao homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada também numa corrida sobre o circuito da sua órbita.

6. É preciso que o poeta prodigalize com ardor, fausto e munificiência, para aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais.

7. Não há mais beleza, a não ser na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças desconhecidas, para obrigá-las a prostar-se diante do homem.

8. Nós estamos no promontório extremo dos séculos!... Por que haveríamos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós já estamos vivendo no absoluto, pois já criamos a eterna velocidade onipresente.

9. Nós queremos glorificar a guerra - única higiene do mundo - o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas idéias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher.

10. Nós queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academia de toda natureza, e combater o moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária.

11. Nós cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela sublevação; cantaremos as marés multicores e polifônicas das revoluções nas capitais modernas; cantaremos o vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas elétricas; as estações esganadas, devoradoras de serpentes que fumam; as oficinas penduradas às nuvens pelos fios contorcidos de suas fumaças; as pontes, semelhantes a ginastas gigantes que cavalgam os rios, faiscantes ao sol com um luzir de facas; os piróscafos aventurosos que farejam o horizonte, as locomotivas de largo peito, que pateiam sobre os trilhos, como enormes cavalos de aço enleados de carros; e o voo rasante dos aviões, cuja hélice freme ao vento, como uma bandeira, e parece aplaudir como uma multidão entusiasta.

um artigo muito relevante para os estudos sobre Fernando Pessoa

Batista de Lima

Quatro Personalidades Pessoanas


Fernando Pessoa não só criou seus heterônimos como estabeleceu para cada um deles, uma biografia própria. É através destas biografias que podemos verificar quão diferentes eles se apresentam.

Fernando Pessoa
(O Ortônimo)

"Há sem dúvida quem ame o infinito."

Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu às 3 horas da tarde do dia 13 de junho de 1888, no 4º andar de um prédio do Largo de São Carlos em Lisboa. Faleceu no dia 30 de novembro de 1935 no hospital de São Luís em Lisboa, acometido de perturbações hepáticas.


O ortônimo escreveu Mensagem, em 1935, onde se revela nacionalista místico. Também escreveu. Quinto Império, onde transparece seu sonho sebastianista e monarquista. Escreveu ainda: Cancioneiro, onde se apresenta lírico e desencantado; Poemas Dramáticos; e 35 Sonnets, onde se revela ocultista, abúlico, amante do mistério.


Através da poética, revela-se dialético, ao exercer, ao exercer a intelectualização da sensação; paúlico, quando trabalha um simbolismo lúcido e consciente, um passo à frente do saudosismo; interseccionista, quando aperfeiçoa mais o simbolismo através da subjetividade excessiva, da síntese elevada ao máximo e através do exagero da atitude estática e da mescla de sensações; lúcido, e angustiado por ser lúcido; e Platônico: Cultivador do vago, do complexo e do sutil. Mais que os heterônimos, o ortônimo tem uma atitude perspicaz de ver as coisas.

Também tende para o gosto pelo que é maneirista, conceptista, pelo uso do paradoxo, daí apresentar-se tradicional e moderno ao mesmo tempo.


Segundo o Professor Linhares Filho, as duas principais características da sua modernidade seriam: a consciência do fazer artístico e a prevalência do apolíneo sobre o dionisíaco, no elaborar-se poético.


Sensacionista, o ortônimo nos mostra como sentir a paisagem, pois, para ele, todo objetivo é uma sensação nossa, toda arte é conversão da sensação em objeto, toda arte é conversão da sensação em sensação.


O próprio Pessoa apresenta cinco condições ou qualidades para entender os símbolos do ortônimo: a simpatia, a intuição, a inteligência, a compreensão e a graça. Depois conclui que:


"Todo estado de alma é uma paisagem. 
Uma tristeza é um lago morto dentro de nós.  
Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior 
e do nosso espírito, e sendo nosso espírito uma paisagem, 
temos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens."
 

Como se vê, um espírito tão rico e até paradoxal como o de Pessoa não podia se resumir numa só personalidade. Daí o surgimento de muitos heterônimos, principalmente o de Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos.


Ricardo Reis
"Há sem dúvida quem deseja o impossível."

Ricardo Reis nasceu em Lisboa, às 11 horas da noite do dia 28 de janeiro de 1914. Foi discípulo de Alberto Caeiro, de quem adquiriu a lição de paganismo espontâneo. Há informação dando conta de que teria embarcado para o Brasil em 12 de outubro de 1919. Em Ricardo Reis,

"Há a renúncia de quem atingiu 
os píncaros da humana lucidez 
e abstrai seus conceitos de impermanência e símbolos 
da contemplação voluntária de uma natureza 
quem o homem iguala 
à essencialidade ideal que lhe basta"

Esse heterônimo pessoano, numa arte poética particularmente sua, procurou sempre o mais alto, o impossível até, para encrustar uma poesia refinada, concisa, elíptica, cunhada em linguagem esmerada e com vocabulário algo alatinado. São antológicas, suas modernizadas odes horacianas: "Lídia", "Coroai-me de Rosas", "O mar Jaz" e "Sábio é o que se Contenta", todas de 1914. De 1916 são mercantes: "Não a Ti, Cristo" e "Não a Ti, Cristo, Odeio...". Nestas odes, prevalece o apolíneo comprovado por uma moderna consciência do fazer artístico. Muitas delas apareceram primeiramente publicadas na revista Athena e, principalmente, na Presença, sempre indiferentes ao social, mas acentuadamente consciente da efemeridade da vida.


Reis leva o paganismo de Caeiro à sua expressão mais ortodoxa, através de um neoclassicismo neo-pagão consciente, cultivando a mitologia greco-latina. Clássico por excelência, idealista e platônico no amor, constata o efêmero da vida e anseia, no íntimo, por uma fenomenológica eternidade terrena.


Segundo Linhares Filho, sob a perspectiva do ser, pode-se dizer que Ricardo Reis ama o impossível, mas sob a perspectiva do "Parecer", ele

"ama o infinito porque mais do que todos 
se apega à vida, desejando-a infinda, 
sob a simulação de resignar-se com a transitoriedade."

Como se observa, amando o impossível ou o infinito, Ricardo Reis sempre procurou os píncaros, como a fugir (fingindo) de uma realidade terrena que verdadeiramente queria viver, eternamente.

Alberto Caeiro
"Há sem dúvida quem não queira nada."

Alberto Caeiro da Silva nasceu em Lisboa, em abril de 1889, e na mesma cidade faleceu, tuberculose, em 1915. Passou quase a vida inteira numa quinta de Ribatejo. Lá escreveu O Guardador de Rebanhos e uma parte de O Pastor Amoroso, que não foi completado. No mesmo local, escreveu ainda alguns poemas de Poemas Inconjuntos, vindo este a se completar já em Lisboa, quando lá o autor voltou, já no final da vida. Aliás, da vida de Caeiro não há o que narrar; sua vida e seus poemas se confundem.


Simples, Caeiro parte do zero, quando regressa a um primitivismo do conhecimento da natureza. Mestre de Ricardo Reis e Álvaro de Campos, a eles ensinou a filosofia do não filosofar, a aprendizagem do desaprender. Compôs uma poética da contemplação, hiperbólica, de linguagem espontânea, discursiva, e prosaica, por extirpar do texto, ao máximo, a conotação tradicional. Considerando o mais contraditório dos heterônimos, atinge o poético pelo apoético, ou seja, conota quando denota, já que usa o inusitado.


Este heterônimo pessoano, diante da possibilidade de se infelicitar com o sol, os prados e as flores que contetam com sua grandeza, procura minimizá-los, comparando-os com eles próprios. Nessa redução do mundo, fica mais latente o "nada". Daí ser ele o heterônimo que nada quer. Mesmo assim, enquanto tenta provar que não intelectualiza nada, é que mais intelectualiza entre as personalidades pessoanas, parece usar o raciocínio sem querer demonstrar isso. Daí ser o mais infeliz, por restringir o mundo, além de fugir do progresso e a ele renunciar.


Caeiro faz uma poesia da natureza, uma poesia dos sentidos, das sensações puras e simples. Foi por isso que procurou, na serra, sentir as coisas simples da vida com maior intensidade.


Sendo o mais intelectualizado entre as personalidades pessoanas, Caeiro foi o que menos se preocupou com o trabalho formal do poema. Daí o comentário crítico do seu discípulo Ricardo Reis:

"Falta nos poemas de Caeiro 
aquilo que deveria completá-los a disciplina exterior. 
Não subordinou a expressão 
à uma disciplina comparável àquela a que subordinou, 
quase sempre, a emoção e sempre, a idéia."

Como afirma Reis Caeiro, sem muitas preocupações formais, foi o filósofo das personalidades pessoanas. Mesmo o tempo todo não querendo nada e trabalhando o lado mais simples da linguagem, a denotação, conseguiu, de maneira surpreendente, elaborar um inusitado monumento poético.

Álvaro de Campos

"Três tipos de idealistas e eu nenhum deles."

Álvaro de Campos nasceu em 15 de outubro de 1889. Engenheiro, inquieto e sensacionista, representa a parte mais audaciosa a que Pessoa se permitiu, através das experiências mais barulhentas do futurismo português, inclusive com algumas investidas no campo da ação político-social.


Para tanto, fez a adoção do cotidiano através do versilibrismo, integrando-se à civilização da máquina com o dinamismo e a inquietude do pós-guerra (la guerra). Essa atitude comprova a sua consciência moderna do fazer artístico, preocupada com o existencial, e, principalmente, com o aproveitamento do que é possível de se extrair da emoção.


A trajetória poética de Álvaro de Campos está compreendida em três fases. A primeira, da morbidez e do torpor, é a fase do "Opiário", oferecido a Mário de Sá-Carneiro e escrito enquanto navegava pelo Canal do Suez, em março de 1914. A segunda fase, mais mecanicista e Whitmaniana, é onde o Futurismo italiano mais transparece num aclimatamento em terras de Portugal. Nessa fase, Campos seria,

"Um Whitman com um poeta grego dentro.  
Pois Pessoa o coloca numa dupla seqüência: 
a de uma arte orientada pelo ideal grego 
e a dos cantores de hinos a civilização moderna 
e sensações por ela provocadas."

É nessa fase onde a sensação é mais intelectualizada. A terceira fase, do sono e do cansaço, aquela que, apesar de trazer alguma coloração surrealista e dionisíaca, é mais moderna e equilibrada se apresenta. É nessa fase em que se enquadram: "Lisbon Revisited" (l923), "Apontamento", "Poema em Linha Reta" e "Aniversário", que trazem, respectivamente, como características, o inconformismo, a consciência da fragilidade humana, o desprezo ao suposto mito do heroísmo e o enternecimento memorialista.


O que se constata, finalmente, é que Álvaro de Campos, a despeito de intelectualizar as sensações e apresentar laivos surrealistas, é a personalidade pessoana que mais se aproximou de uma poesia realista, e, também, quem mais foi marcado pelos caracteres da modernidade.

Uma "entrevista" muito interessante!!

Fernando Pessoa,
uma colagem de
Rodrigo Souza Leão

Começo pedindo perdão aos puristas. Meu objetivo não foi escrever o currículo de Fernando Pessoa, como sempre ocorre, nas linhas de abertura da entrevista. Todos o conhecem. Dito isto...

Em 1888 nasce Fernando Antônio Nogueira Pessoa, em 13 de junho, no Largo de São Carlos, Lisboa. Com sete anos escreve o seu primeiro poema, intitulado À Minha Querida Mamã. Desta data até 1935, no dia 30 de novembro, quando vem a falecer; Fernando Pessoa ergue a sua obra literária. Em vida publicou apenas Mensagem, com o qual ficou em segundo lugar num concurso literário. Sua última frase escrita foi: "I know not what tomorrow will bring".

Rodrigo Souza Leão



Quem é a pessoa atrás do Pessoa?

Nesta vida em que sou meu sono,
Não sou meu dono,
Quem sou é quem me ignoro e vive
Através dessa névoa que sou eu
Todas as vidas que eu outrora tive,
Numa só vida.

Álvaro de Campos


Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.

Ricardo Reis


Se as coisas são estilhaços
Do saber do universo,
Seja eu os meus pedaços,
Impreciso e diverso.
Eles foram e não foram.

Fernando Pessoa

Como é o seu processo criativo?

As vezes tenho idéias felizes,
Idéias subitamente felizes, em idéias
E
nas palavras em que naturalmente se despegam...
Depois de escrever, leio...
Por que escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Seremos nós nesse mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...

Álvaro de Campos


Não me importo com às rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de
exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior

Alberto Caeiro

O que os deuses querem de um homem como Fernando Pessoa?

Queriam-me casado, cotidiano, fútil e tributável?
Queriam-me o contrário disso, o contrário de qualquer [coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!

Álvaro de Campos

O senhor acredita em Deus?

Às vezes sou o Deus que trago em mim
E
então eu sou o Deus, o crente e a prece
E a imagem de marfim
Em que esse Deus se esquece.

Às vezes não sou mais que um ateu
Desse Deus meu que eu sou quando me exalto.
Olho em mim todo um céu
E é um mero oco céu alto.

[Novas Poesias Inéditas]

O senhor tem um lado zen. O que é pensar no nada?

Pensar em nada
é ter a alma própria e inteira.
Pensar em nada
É viver intimamente
O fluxo e o refluxo da vida.

Álvaro de Campos

O senhor é/foi maluco beleza?

Fui doido e tudo por Deus.
Só a loucura incompreendida
Vai avante para os céus.



Só a loucura é que é grande!
E só ela é que é feliz!

[Poemas Dramáticos
Primeiro Fausto]

Existe algum mistério no Universo?

O único mistério do Universo é o mais e não o menos.
Percebemos demais as cousas — eis o erro, a dúvida.
O que existe transcende para mim o que julgo que existe.

A Realidade é apenas real e não pensada.

Alberto Caeiro

O principal desejo do poeta é a eternidade?

ama o infinito porque mais do que todos
se apega à vida, desejando-a infinda,
sob a simulação de resignar-se com a transitoriedade.

O Senhor é saudosista?

Eu amo tudo que foi,
Tudo que já não é,
A dor que já não me dói.
A antiga e a errônea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi e voou
E hoje é já outro dia.

[Poesias Coligadas/inéditas]


Saudades, só portugueses
Conseguem senti-las bem
Porque têm essa palavra
Para dizer que as têm

[Quadras ao gosto popular]

O senhor é um sábio?

Sábio é o que se contenta com o espetáculo do mundo,
E ao beber nem recorda
Que já bebeu na vida,
Para quem tudo é novo
E imarcescível sempre.

Ricardo Reis

Como definiria a VIDA neste mundo de meu Deus?

A vida é um hospital
Onde quase tudo falta.
Por isso ninguém se cura
E morrer é que é ter alta.

[Quadras ao gosto popular]

Quem é o poeta? O que busca na poesia?

O poeta é um fingidor,
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

Fernando Pessoa


Ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho

Alberto Caeiro

Tem algum mote que o acompanhe?

"Tudo vale a pena quando a alma não é pequena."

Fernando Pessoa

Qual o conselho pode dar aos jovens de espírito?

Segue o teu destino,
Rega a tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Ricardo Reis

11 de abr. de 2009

mais alguns poemas de Bocage

Já sobre o coche de ébano estrelado,
Deu meio giro a Noite escura e feia,
Que profundo silêncio me rodeia
Neste deserto bosque, à luz vedado!

Jaz entre as folhas Zéfiro abafado,
O Tejo adormeceu na lisa areia;
Nem o mavioso rouxinol gorjeia,
Nem pia o mocho, às trevas acostumado.

Só eu velo, só eu, pedindo à Sorte
Que o fio com que está mih'alma presa
À vil matéria lânguida, me corte.

Consola-me este horror, esta tristeza,
Porque a meus olhos se afigura a Morte
No silêncio total da Natureza.
______


Das terras a pior tu és, ó Goa,
Tu pareces mais ermo que cidade,
Mas alojas em ti maior vaidade
Que Londres, que Paris ou que Lisboa.

A chusma de teus íncolas pregoa
Que excede o Grão Senhor na qualidade;
Tudo quer senhoria; o próprio frade
Alega, para tê-la, o jus da c'roa!

De timbres prenhe estás; mas oiro e prata
Em cruzes, com que dantes te benzias,
Foge a teus infanções de bolsa chata.

Oh que feliz e esplêndida serias,
Se algum fusco Merlim, que faz bagata,
Te alborcasse a pardaus as senhorias!

_____

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co'o sacrílego gigante.

Como tu, junto ao Ganges sussurante,
Da penúria cruel no horror me vejo.
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és, mas . . . oh, tristeza! . . .
Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.

_____



Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;


Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno;


Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades;


Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.

Aos sócios da "Nova Arcádia"

Vós, ó Franças, Semedos, Quintanilhas,
Macedos e outras pestes condenadas;
Vós, de cujas buzinas penduradas
Tremem de Jove as melindrosas filhas;

Vós, néscios, que mamais das vis quadrilhas
Do baixo vulgo insossas gargalhadas,
Por versos maus, por trovas aleijadas,
De que engenhais as vossas maravilhas,

Deixai Elmano, que, inocente e honrado
Nunca de vós se lembra, meditando
Em coisas sérias, de mais alto estado.

E se quereis, os olhos alongando,
Ei-lo! Vede-o no Pindo recostado,
De perna erguida sobre vós mijando.

Meu ser evaporei na luta insana

Do tropel de paixões que me arrastava:

Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava

Em mim quasi imortal a essência humana!


De que inúmeros sóis a mente ufana

Existência falaz me não dourava!

Mas eis sucumbe Natureza escrava

Ao mal, que a vida em sua origem dana.


Prazeres, sócios meus, e meus tiranos!

Esta alma, que sedenta em si não coube,

No abismo vos sumiu dos desenganos



Deus, ó Deus!... quando a morte a luz me roube,

Ganhe um momento o que perderam anos,

Saiba morrer o que viver não soube.


_____

Sobre estas duras, cavernosas fragas,

Que o marinho furor vai carcomendo,

Me estão negras paixões n'alma fervendo

Como fervem no pego as crespas vagas.



Razão feroz, o coração me indagas,

De meus erros e sombra esclarecendo,

E vás nele (ai de mim!) palpando, e vendo

De agudas ânsias venenosas chagas.


Cego a meus males, surdo a teu reclamo,

Mil objectos de horror co'a ideia eu corro,

Solto gemidos, lágrimas derramo.


Razão, de que me serve o teu socorro?

Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo;

Dizes-me que sossegue: eu peno, eu morro.




8 de abr. de 2009

À MINHA MUSA
teixeira de pascoaes

Senhora da manhã vitoriosa
E também do crepúsculo vencido.
Ó senhora da noite misteriosa,
Por quem ando, nas trevas, confundido.

Perfil de luz! Imagem religiosa!
Ó dor e amor! Ó sol e luar dorido!
Corpo, que é alma escrava e dolorosa,
Alma, que é corpo livre e redimido.

Mulher perfeita em sonho e realidade.
Aparicão Divina da Saudade...
Ó Eva, toda em flor e deslumbrada!

Casamento da lágrima e do riso;
O céu e a terra, o inferno e o paraíso,
Beijo rezado e oração beijada.
A NEGRA
Costa Alegre

Negra gentil, carvão mimoso e lindo
Donde o diamante sai,
Filha do sol, estrela requeimada,
Pelo calor do Pai,

Encosta o rosto, cândido e formoso,
Aqui no peito meu,
Dorme, donzela, rola abandonada,
Porque te velo eu.

Não chores mais, criança, enxuga o pranto,
Sorri-te para mim,
Deixa-me ver as pérolas brilhantes,
Os dentes de marfim.

No teu divino seio existe oculta
Mal sabes quanta luz,
Que absorve a tua escurecida pele,
Que tanto me seduz.

Eu gosto de te ver a negra e meiga
E acetinada cor,
Porque me lembro, ó Pomba, que és queimada
Pelas chamas do amor;

Que outrora foste neve e amaste um lírio,
Pálida flor do vale,
Fugiu-te o lírio: um triste amor queimou-te
O seio virginal.

Não chores mais, criança, a quem eu amo,
Ó lindo querubim,
O amor é como a rosa, porque vive
No campo, ou no jardim.

Tu tens o meu amor ardente, e basta
Para seres feliz;
Ama a violeta que a violeta adora-te
Esquece a flor-de-lis.
NEGRA!
Cordeiro da Mata

Negra! negra! como a noite
d'uma horrível tempestade,
mas, linda, mimosa e bella,
como a mais gentil beldade!
Negra! negra! como a asa
do corvo mais negro e escuro,
mas, tendo nos claros olhos,
o olhar mais límpido e puro!

Negra! negra! como o ébano,
seductora como Phedra,
possuindo as celsas formas,
em que a boa graça medra!
Negra! negra!... mas tão linda
co'os seus dentes de marfim;

que quando os lábios entreabre,
não sei o que sinto em mim!...

II

Só, negra, como te vejo,
eu sinto nos seios d'alma
arder-me forte desejo,
desejo que nada acalma.
se te roubou este clima
do homem a cor primeva;
branca que ao mundo viesses,
serias das filhas d'Eva
em belleza, ó negra, a prima!...
gerou-te em agro torrão;
S'elevar-te ao sexo frágil
temeu o rei da criação;
é qu'és, ó negra creatura,
a deusa da formosura!...

7 de abr. de 2009

Conferências do Casino

Série de conferências realizadas em Lisboa, na Primavera de 1871, pelo grupo do Cenáculo, formado por jovens escritores e intelectuais de vanguarda.
O grande impulsionador foi Antero de Quental, que chegara a Lisboa em 1868, e logo principiara a influir nos gostos e interesses do grupo, iniciando-o na leitura de Proudhon, que tanto havia de transparecer nos trabalhos realizados. A ideia das Conferências (a que Antero entusiasticamente se refere em carta a Teófilo Braga, surgiu na Casa da Rua dos Prazeres, onde o Cenáculo reunia então. Antero e Batalha Reis alugaram a sala do Casino Lisbonense, no largo da Abegoaria, hoje de Rafael Bordalo Pinheiro; a Revolução de Setembro, onde então trabalhava Alberto de Queirós, irmão do romancista, encarregou-se da propaganda. A 18 de Maio apareceu naquele jornal um manifesto (que já fora distribuído em prospecto), assinado por doze nomes: Adolfo Coelho, Antero de Quental, Augusto Soromenho, Augusto Fuschini, Eça de Queirós, Germano Vieira de Meireles, Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins, Manuel Arriaga, Salomão Sáraga, Teófilo Braga. Ali se apontavam as intenções dos organizadores das chamadas «Conferências Democráticas»: perante a transformação política e social que o mundo sofria, os signatários sentiam-se no dever de «estudar serenamente a significação dos interesses em jogo»; de investigar como a sociedade é e como ela deve de ser»; de «estudar todas as ideias e todas as correntes do século». A atitude de indiferença e alheamento relativamente às prementes ansiedades do momento – atitude em que Portugal se mantinha – parecia-lhes criminosa e esterilizadora das energias vitais da nação. E os organizadores enunciavam mais claramente o seu programa: «Abrir uma tribuna onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam este movimento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos; ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada; procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam na Europa; agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência modernas; estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa».
A 22 de Maio, Antero de Quental fez a primeira conferência, a que chamou O Espírito das Conferências, e de que hoje nos restam apenas os relatos dos jornais contemporâneos. Era o desenvolvimento do programa contido no manifesto. Insistia-se na ignorância, indiferença e consequente repulsa dos portugueses pelas ideias novas, na missão que aos grandes espíritos incumbia de preparar as inteligências e as consciências para o progresso das sociedades e os resultados da ciência. Aduzia-se de novo o exemplo da restante Europa, e de novo se estigmatizava a vergonhosa excepção que Portugal constituía. O fulcro da discussão nas futuras conferências, anunciava o orador, seria a Revolução no que este conceito continha de mais nobre e elevado. E Antero terminava com um apelo a todas as almas de boa vontade, para que meditassem nos problemas que iam ser propostos, e nas possíveis soluções, embora contrárias aos princípios defendidos pelos conferencistas.
A segunda prelecção, realizada dias depois, foi ainda de Antero: Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, publicada meses depois em opúsculo. As causas mencionadas eram três: o catolicismo posterior ao Concílio de Trento – que desvirtuara a essência do Cristianismo e atrofiara a consciência individual; a monarquia absoluta – que coarctara as liberdades nacionais e embotara na cega submissão o carácter da raça ibérica; as conquistas ultramarinas – que tinham exaurido as energias do país e criado hábitos funestos de ociosidade e grandeza. Para estes males, cujas consequências ainda então continuavam a fazer-se sentir, as soluções propostas eram: opor ao catolicismo a consciência livre, a ciência, a filosofia, a crença na renovação da Humanidade; à monarquia centralizada a federação republicana, com larga democratização da vida municipal; à inércia industrial, a iniciativa do trabalho livre, sem interferência do Estado, e «organizado de forma a estabelecer a transição para o novo mundo industrial do socialismo, a que pertence o futuro». Antero terminava expondo o seu conceito de Revolução – acção pacífica –, e fechava com a síntese escandalosa: «0 Cristianismo foi a Revolução do mundo antigo: a Revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno».
Augusto Soromenho falou em seguida sobre Literatura Portuguesa. Fez a negação sistemática dos valores e literários nacionais – com excepção de Gil Vicente, Camões e poucos mais; fundado num etnicismo romântico, negava até a existência duma literatura portuguesa, uma vez que a nossa actividade nesse ramo nunca fora expressão autêntica da vida nacional; os contemporâneos eram os mais vigorosamente atacados – poetas, romancistas, dramaturgos, homens da Imprensa. Mas, para modelo e guia duma renovação salvadora, Soromenho limitava-se a propor Chateaubriand; falava do Belo absoluto como ideal da Literatura e negava que esta fosse o retrato das sociedades; era-o sim da Humanidade em geral. A voz de Soromenho, professor do Curso Superior de Letras, homem de formação clássica, soou um pouco discordante, apesar do furor de crítica que o animava.
A quarta conferência – a de Eça de Queirós, sobre A Literatura Nova – o Realismo como nova expressão de Arte – contradizia em vários pontos a sua exposição e era na verdade um grito de revolta contra as tradições literárias. Bem integrada no espírito revolucionário, a sua prelecção, que directamente se inspirava em Proudhon, chamava logo de início a atenção para a necessidade de operar na literatura a mesma revolução que se estava dando na política, na ciência, na vida social. Expunha depois a doutrina da arte como produto das sociedades, intimamente ligada ao progresso e decadência destas, e subordinada não já a puros factores individuais, mas a causas extrínsecas – causas permanentes (o solo, a raça, o clima) e causas acidentais (as circunstâncias históricas). Entre as causas acidentais, a mais importante era sem dúvida a que Eça chamou «ideia-mãe» - o ideal duma sociedade; eis o que não faltava ao século XIX, mas que só havia pouco principiara a ser aproveitado em Literatura, pois muitos tinham-no ignorado ou atraiçoado. Era a Revolução, que inspirara tantos escritores (Eça insistia nos exemplos franceses), de Rabelais a Beaumarchais, até ser renegada e esquecida pela arte contra-revolucionária; seguia-se depois a crítica cerrada ao Romantismo, a Chateaubriand, ao dessoramento aristocrático e à apoplexia plebeia dos românticos; verberava-se o terrível divórcio entre o artista e a sociedade; depois, Eça anunciava o princípio da reacção salutar que se estava dando contra a impostura oficializada: era o Realismo. Seguia-se a definição apologética da nova escola, que estava longe de ser um mero processo formal, como alguns supunham: era a negação da arte pela arte, da retórica balofa, do passadismo; era a análise com vista à verdade absoluta, era a anatomia do carácter; e, dando um retrato do homem e da sociedade, o Realismo tocava os limites da moral; visava à justiça e à verdade, servia o ideal do seu tempo. Bela, justa, verdadeira, a obra de arte realista não podia nunca ser considerada imoral, como tantos criam. E Eça documentava-se com a Bovary, com os quadros de Courbet (como Proudhon já fizera), e acabava com um apelo para que a arte se salvasse pelo Realismo, condenação do vício, revalorização do trabalho e da virtude.
A quinta e última conferência fê-la Adolfo Coelho a 19 de Junho; chamou-Ihe A Questão do Ensino, quando, passado tempo, a publicou em opúsculo. Menos avançada que as de Antero e Eça, estava apenas, como a de Soromenho, numa pura posição de ataque às coisas portuguesas, e as soluções que apontava circunscreviam-se ainda a uma zona restrita da vida nacional. Depois de traçar o quadro desolador do ensino em Portugal através da História, Adolfo Coelho apontava como solução a separação completa de Igreja e Estado, e a mais ampla liberdade de consciência. E como, segundo o conferencista, a Igreja não fazia mais que deprimir o povo, e do Estado também nada havia a esperar, o único remédio era apelar para a iniciativa privada, esperando que ao menos esta se esforçasse por difundir o verdadeiro espirito cientifico – único verdadeiramente profícuo no ensino.
Anunciou-se ainda uma sexta conferência, Os historiadores críticos de Jesus, de Salomão Sáraga. Mas, no dia marcado para a sua realização, apareceu colado na porta do Casino Lisbonense o aviso de proibição das conferências, «prelecções em que se expõem e procuram sustentar doutrinas e proposições que atacam a religião e as instituições políticas do Estado». À volta desta proibição levantou-se violenta celeuma; lavrou-se imediatamente um protesto, e logo choveram as cartas aos jornais e os opúsculos de polémica entre os quais a terrível carta de Antero «ao Marquês de Ávila e de Bolama». Os protestos foram vãos; a proibição manteve-se, e nunca chegaram a realizar-se as outras conferências previstas: O Socialismo, por Batalha Reis; A República, por Antero; A Instrução Primária, por Adolfo Coelho; e A Dedução Positiva da Ideia Democrática, por Augusto Fuschini.
Encaradas no seu conjunto, as «Conferências do Casino» representam entre nós a afirmação dum movimento de ideias que contagiara os intelectuais portugueses, através dos livros vindos de fora. Era o historicismo, o interesse pelas ciências políticas e sociais, a critica positivista à maneira de Taine, o evolucionismo de Darwin, um alvorecer de interesse pelas teorias de Marx e Engels, os ecos da Internacional, o realismo em Arte como expressão dum novo ideal de vida, a crença no progresso das sociedades, conseguido através do avanço das ciências – das positivas, cujo prestígio crescia a cada instante. E, embora as prelecções de Soromenho e A. Coelho se tenham mantido alheias a este espírito revolucionário, e apenas tenham marcado uma posição de ácido negativismo quanto às coisas portuguesas – a verdade é que o espírito das Conferências do Casino foi este. Como Eça afirmava nas Farpas, «era a primeira vez que a Revolução sob a sua forma científica tinha em Portugal a sua tribuna».
Lemos, Ester de, DICIONÁRIO DE LITERATURA, 3ª edição, 1º volume, Porto, Figueirinhas, 1979


A Abertura das Conferências do Casino

Maio 1871
O Sr. Antero de Quental abriu no dia 19 as conferências democráticas no Casino.

É a primeira vez que a revolução, sob a sua forma científica, tem em Portugal a palavra.
O mundo revolucionário, ou antes, na sua feição partidária e política, o mundo republicano, tinha-se até hoje manifestado indistintamente - por alguma voz isolada que sem eco se extinguia no silêncio da opinião, ou pelas agitações, mais suspeitadas que verificadas, de especuladores e de intrigantes. Às vezes meia folha de papel era distribuída grátis, com alguns insultos aos ministros, ao Rei, e a um ou outro regedor. Outras vezes aparecia um jornal, que, em tom lírico, cantava a fraternidade e os seus encantos, dirigia apóstrofes ao rochedo de Guernesey, citava o Gólgota em questões de fazenda, e voltando-se para o Rei, dizia-lhe: - Tu! Por vezes ainda um jornal de capa vermelha, e de calúnia de outras cores, a propósito de liberdade insultava senhoras, e, sob o pretexto de ser um jornal, de combate, era um jornal de difamação. Havia outros republicanos: todos os jornais na oposição se dão vagamente esse ar, falam então no suor do povo... (Imaginarão que a aristocracia não sua? Como se iludem!) O Jornal do Comércio, representante da burguesia liberal, foi algum tempo republicano, e dizia aos tiranos coisas desagradáveis que deviam magoar Napoleão III, o defunto Calígula, e outros ex-opressores. O partido do Sr. Marquês de Angeja parece que também tendia para republicano; pelo menos assim o pensavam os criados do Martinho. Alguns reformistas têm dito que o sr. bispo de Viseu, bem no seu fundo - é republicano. Corre que outros chefes de partido o são também. E isto vai numa tal contaminação democrática, que o único conservador constante que nos fica - é Danton!
Tal era o partido republicano, que causava hilaridade! Por isso o espanto é grande, vendo aparecer homens que apresentam a revolução serenamente - como uma ciência a estudar. Não o fariam mais tranquilamente se se tratasse de anatomia.
As conferências hão-de encontrar resistências. Em primeiro lugar o nosso público inteligente e literário, ama sobretudo o bel-esprit, a oratória, a frase. Moda peninsular. Ora as conferências pela sua natureza científica e experimental - exigem justamente o contrário dos aparatos retóricos. São a demonstração, não são a apóstrofe; são a ciência, não são a eloquência. As declamações têm tirado à democracia o seu carácter privativo de realidade e de ciência. Temos ouvido cantar a democracia, berrá-la, soluçá-la: é tempo de a vermos demonstrar. Deixemos no bengaleiro a nossa perpétua inclinação nacional de escutar odes - e entremos só com a tendência humana de resolver problemas.
A revolução aparece ao mundo conservador, como o cristianismo ao mundo sofista. Os sofistas tinham tomado o partido de rir daqueles nazarenos. É o que faz agora o periódico a Nação, quando se trata de revolução. Não és original, ó Nação!
Tenhamos bom senso! Escutemos a revolução; e reservemo-nos a liberdade de a esmagar - depois de a ouvir.
Uma coisa que a compromete é ela falar em nome do proletário. O proletário pretende explicar-se; quer por um lado contar a sua miséria, por outro provar o seu direito. O simples bom senso indica que se deixe falar o proletário. Silêncio ao pobre! gritava Lamennais em 48. Esta palavra horrorosa, que é um dobre a finados pela dignidade humana, inspira ainda as instituições. - Santo Deus! Parece que lhes dói a consciência, às instituições! Deixemos falar o proletário. Que receiam? Não temos os nossos exércitos, os nossos parlamentos, a nossa polícia? Deixemo-lo falar.
Desdigamo-lo depois quando ele mentir, refutemo-lo quando errar. É muito mais cómodo encontrarmo-nos com quem represente o proletário, sossegadamente, na sala do Casino, do que encontrarmos o próprio proletário mudo, taciturno, pálido de ambição ou de fome, armado de um chuço à embocadura de uma rua. Fazer conferências - se bem atentamos neste acto - reconhece-se que é uma coisa diferente de fazer barricadas. É por lhe não permitirem fazer conferências que o proletário parisiense faz fogo. O proletário inglês não espingardeia os seus governos, pela razão de que fala nos meetings. E, quando aqueles que falam no poder os representam mal, os operários ingleses pedem-lhes contas nos seus comícios, cobrem-nos de impropérios, e atiram-lhes com cebolas à cara. Se a vítima tenta fugir ou fazer resistência à cebola ou ao insulto, um policeman segura-o gravemente pela gola da casaca, e convida em nome da moralidade, o procurador do povo, a esperar pelos restos da injúria e da hortaliça.
Temos ainda que, actualmente, o grande carácter das conferências é, segundo nos parece, a oportunidade. Há muito tempo que a opinião pública as pedia. O quê! há aí alguém que o negue?
Não o nega decerto o parlamento onde todos os dias ministros, maiorias e oposições, dizem que o País está desorganizado.
Não o nega decerto a imprensa, que todos os dias declara que o sistema constitucional está desautorizado! (Diário Popular, Jornal do Comércio, Gazeta, etc., passim).
Não o nega a opinião, que todos os dias exclama, com uma certa convicção desleixada, nos cafés, nas ruas, nos passeios, nos estancos: - Ora! isto está podre!
Quando a opinião, tão geral, diz que um país está perdido dentro de um sistema, coloca-se por essa mesma confissão fora do sistema, e deseja, por uma propaganda nova, uma reforma social.
Sejamos lógicos. As Farpas não são o legitimismo, nem a república, nem o constitucionalismo, nem o sebastianismo. Desejam simplesmente ser a lógica e o bom senso.
Vejamos: não tem a imprensa confessado todos os dias a podridão do País e a desorganização das suas forças vivas? (Jornais políticos, passim).
Ou são sinceros, ou não. Se não são, então faltam duplamente à dignidade, porque desconsideram os outros enganando-os, e desconsideram-se a si mentindo. São perturbadores de profissão: querem lançar, de caso pensado, o cepticismo no espírito público, para o interesse da sua intriga. Pertencem portanto ao ministério público. - Se são sinceros então devem estar radiantes de alegria, porque têm essa propaganda nova que implicitamente pediam.
Não vemos nós os ministérios dissolvendo câmaras, depois de lhes experimentarem um momento de inteligência - Outra, que esta não presta!?
Não vemos os partidos, em quem deve residir a consciência do Estado, derrubarem todos os dias ministérios, como um homem que num chapeleiro experimenta chapéus - Outro, que este não serve?
E vós, jornais políticos, não confessais vós todos os dias a impotência dos vossos políticos? Não vos tendes dito uns aos outros os extremos insultos? Não vos tendes destruído uns pelos outros? Apelamos para ti, leitor de bom senso. Não é verdade que o Diário Popular tem dito, dentro do sistema, que o Sr. Fontes é incapaz de organizar o País? É. - Não é verdade que a Revolução tem provado à saciedade, dentro do sistema, que o sr. bispo de Viseu é incapaz de organizar o País? É. - Não é verdade que a Gazeta do Povo tem provado que ambos eles são incapazes? E não é verdade que a Revolução e o Diário Popular têm afirmado uniformemente que o incapaz é o Sr. Braamcamp? É. Por consequência parece que estais inutilizados uns pelos outros. Se um fala verdade, todos a falam. Se um a falseia, todos a falseiam. Portanto ou tendes de aceitar a vossa condenação, ou tendes de confessar a vossa falsidade.
Qual é a conclusão? A necessidade de uma propaganda nova. É o que a imprensa está pedindo há longo tempo; é o que o Casino enfim lhe fornece! Muito feliz ainda que lhe não apareça com chuços, tocando a rebate pelas ruas, e que lhe apareça apenas com ideias, e tocando a rebate através das consciências. Todos os partidos estão pois interessados nesta propaganda. Quem fala depois do Sr. Antero de Quental? Deve ser o sr. bispo de Viseu!
Queiroz, Eça de, Uma Campanha Alegre (de «As Farpas»), volume I, Lello & Irmão - Editores, Porto, 1979


A Supressão das Conferências do Casino
Maio 1871

O sr. ministro do Reino fez entregar por um empregado de polícia ao Sr. Zagalo, director do Casino, um papel - reaccionário pela intenção, mas demagógico pela gramática - em que se notificava que, por ordem superior, estavam fechadas as conferências democráticas.
Conheces já decerto, leitor sensato e honrado, o protesto dos conferentes, a adesão de outros cidadãos, a opinião da imprensa...
E achas certamente na tua consciência que este acto do sr. marquês de Ávila, não tendo de certo modo equidade, não tem de modo algum legalidade; que é sobretudo profundamente inábil;
e que o sr. marquês, dando um golpe de Estado contra alguns escritores que no Casino faziam crítica de história e de literatura, foi criar uma atitude política onde só havia um intuito científico.
Homens que numa sala, com senhoras na galeria, movem questões científicas e literárias, numa alta generalização de ideias, são tão inofensivos na política do seu país como um livro de matemática. São motores de pensamento e de estudo, que vão tocar a rebate no sino das Mercês. - Mas homens que o Governo obriga a fazer um protesto num café, na agitação de trezentas pessoas; a percorrerem as redacções dos jornais, seguidos de uma multidão indignada; a colocarem-se como defensores da consciência ofendida - esses parecem-se terrivelmente com homens de uma acção política! As conferências desceram assim da sua serenidade filosófica; estão na luta, estão na discussão da Carta, estão na prosa da gazeta do Povo!
Vejamos a legalidade do facto. Num país constitucional, tem-se sempre aberta sobre a mesa a Carta Constitucional - ou para descansar nela o charuto, ou para tirar dela um argumento.
Diz a Carta no seu artigo 145.º:
A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos portugueses... é garantida pela Constituição do Reino, pela maneira seguinte:
§ 3.º Todos podem comunicar o seu pensamento por palavras e escritos, e publicá-los pela imprensa sem dependência de censura, contanto que hajam de responder pelos abusos que cometerem no exercício desse direito.
Temos, pois, adquiridos à certeza dois pontos:
1.º Que todo o cidadão pode publicar o seu pensamento falando ou escrevendo;
2.º Que o cidadão fica responsável pelo abuso do seu direito.
Por consequência, logo na primeira conferência:
1.º O Sr. Antero de Quental podia falar sobre a religião em toda a liberdade da sua opinião;
2.º Se abusasse, o Sr. Antero de Quental respondia pelo abuso.
É lógico. Ora quem torna efectiva a responsabilidade desse abuso?
Em primeiro lugar: O comissário que deve assistir a todas as reuniões públicas, na ideia do decreto com força de lei de 15 de Junho de 1870. «As reuniões públicas (diz este decreto) podem ser dissolvidas pela autoridade... quando por qualquer forma perturbarem a ordem pública. A dissolução da reunião só pode ser intimada à assembleia - depois da autoridade advertir em voz alta os directores da reunião (neste caso, o prelector)». O comissário assistente das conferências, o Sr. Rangel, não intimou, e não advertiu o Sr. Antero de Quental, nem em voz alta, nem com gestos. Talvez o tivesse feito por suspiros - mas esse caso não está na lei. Portanto o sr. comissário não achou, na sua consciência, que o Sr. Antero de Quental abusasse da liberdade de expor o seu pensamento.
Em segundo lugar: O ministério público querelou do Sr. Antero de Quental? Não.
Por consequência nem o comissário presente à conferência, nem o ministério público, encontraram na conferência do Sr. Antero de Quental abuso punível.
As conferências que se seguiram foram, uma sobre crítica literária contemporânea, outra sobre o realismo, como nova expressão da arte, a terceira sobre o ensino e as suas reformas. Em que atacavam estas a religião ou as instituições políticas? Fazer a crítica da literatura contemporânea é ofender (segundo a linguagem rococó da portaria) o código fundamental da monarquia? Nesse caso pedimos a cabeça do Sr. Pinheiro Chagas, o crânio do Sr. Júlio Machado, e uma grande porção do Sr. Luciano Cordeiro! Quem o diria!? Quando se escrever que o Sr. Vidal é um poeta lírico ligeiramente inferior a Lamartine, o trono de Sua Majestade ficará bambaleando um quarto de hora!
Mas vejamos! A última conferência foi feita no dia 19 de Junho; a portaria foi dada no dia 26 do mesmo mês, antes da conferência que ia ser feita. Por consequência o ser. marquês de Ávila fechou, não as conferências que se tinham feito, o que seria um pouco inútil - mas as conferências que se iam fazer.
Ora, segundo o citado artigo da Carta, só se pode coibir a liberdade de pensamento quando houver abuso: e como esse abuso não existia, pelo simples motivo que a conferência ainda não fora feita, e por consequência o pensamento não fora manifestado - segue-se que o sr. ministro do Reino violou a Carta, se esta palavra violar ainda se pode empregar a respeito da Carta, sem atrair sorrisos maliciosos sobre tão insensata metáfora.
Ao ministro cabia unicamente o direito de fazer processar o Sr. Antero de Quental. Isso era a lógica, o bom senso, a legalidade.
Do que o ministro não tem o mínimo direito é da rude supressão da palavra a prelectores de literatura, de arte e de pedagogia. Fazendo, como fez, tal supressão está fora da lei, fora do espírito do tempo, quase fora da humanidade.
Com direito igual pode amanhã o sr. ministro mandar suprimir As Farpas, os romances do Sr. Camilo Castelo Branco, os volumes de história do Sr. Alexandre Herculano, os jornais, a conversação, esta simples pergunta - «Como está? passou bem?» Pode suprimir ainda um sorriso ou um olhar expressivo. Pode fulminar o espirro!
Ora o artigo 103.º da Carta diz:
«Os ministros são responsáveis... § 5.º Pelo que obrarem contra a liberdade dos cidadãos.»
E o § 28 do artigo 145.º acrescenta:
«todo o cidadão poderá fazer apresentar reclamações, queixas... e ATÉ expor qualquer infracção da constituição, requerendo... a efectiva responsabilidade do infractor.»
Seria portanto possível responder à portaria do sr. marquês de Ávila com o instrumento seguinte:
- «Requeiro à Câmara dos Deputados que torne efectiva a responsabilidade do sr. ministro do Reino, procedendo contra ele como infractor do § 3.º do art.º 145 da Carta Constitucional - segundo me é permitido pelo § 28 do citado artigo.»
Tanto em relação ao prelector que abusou da liberdade, segundo a Carta, como para o ministro que infringiu a lei, segundo a mesma Carta, temos até aqui argumentado com a legalidade.
Agora a equidade:
Que se quis fazer calar nas conferências? Foi a crítica política? Para que se deixa então circular no País os livros de Proudhon, de Girardin, de Luís Blanc, de Vacherot? Foi a crítica religiosa? Para que se consente então que atravessem a fronteira ou a alfândega os livros de Renan, de Strauss, de Salvador, de Michelet?
Sejamos lógicos; fechemos as conferências do Casino onde se ouvem doutrinas livres, mas expulsemos os livros onde se lêem doutrinas livres. Ouvir ou ler dá os mesmos resultados para a inteligência, para a memória, e para a acção: é a mesma entrada para a consciência por duas portas paralelas. Façamos calar o Sr. Antero de Quental, mas proibamos na alfândega a entrada dos livros de Vítor Hugo, Proudhon, Langlois, Feuerbach, Quinet, Littré, toda a crítica francesa, todo o pensamento alemão, toda a ideia, toda a história. Dobremos a cabeça sobre a nossa ignorância e sobre a nossa inércia, e deixemo-nos apodrecer, mudos, vis, inertes, na torpeza moral e no tédio.
Nós não queremos também que num país como este, ignorante, desorganizado, se lance através das ambições e das cóleras o grito de revolta! Queremos a revolução preparada na região das ideias e da ciência; espalhada pela influência pacífica de uma opinião esclarecida; realizada pelas concessões sucessivas dos poderes conservadores; - enfim uma revolução pelo Governo, tal como ela se faz lentamente e fecundamente na sociedade inglesa. É assim que queremos a revolução. Detestamos o facho tradicional, o sentimento rebate de sinos; e parece-nos que um tiro é um argumento que penetra o adversário - um tanto de mais!
Seríamos pois nós os primeiros a pedir o encerramento das conferências do Casino, se a ciência dos conferentes se resumisse a dizer:
- A barricada, meus senhores, é amanhã na Rua da Bitesga! Quanto ao petróleo, está lá em baixo no bilheteiro!
Mas que se faça calar, pondo-lhe a mão na boca, a ciência, a crítica literária, a história, contra isso, do fundo deste livro, pequeno mas honrado, em nome do respeito que nós devemos a nós mesmos, e do exemplo que devemos a nossos filhos, protestamos e apelamos, não para a Europa, o que seria sofrivelmente inútil, mas para o próprio sr. marquês de Ávila, para uma coisa que ele deve ter debaixo da sua farda, uma coisa que não se cala, ainda quando em redor a intriga e o interesse fazem um ruído horrível - a consciência!
Pois quê! Podem ler-se nas Bibliotecas e no Grémio, jornais republicanos, jornais da Comuna, toda a sorte de livros materialistas, racionalistas e socialistas - e não há-de ser permitido falar do que há de mais abstracto na política, de mais estranho e superior às agitações humanas e às violências partidárias, a História?
Pois é permitido à Nação publicar, em prosa impressa e permanente, ataques rancorosos à liberdade constitucional e à realeza constitucional - e não pode ser permitido ao Sr. Antero condenar as monarquias absolutas, e ao Sr. Soromenho condenar os romances eróticos?
Pois o marquês de Pombal expulsa os jesuítas e a sua política, e não é permitido a um conferente do Casino fazer a crítica da política dos jesuítas?
Argumentemos! Eu posso comprar um livro de Proudhon que combate o catolicismo, as monarquias, o capital: estou na legalidade. Posso lê-lo em voz alta aos meus amigos, ou aos meus criados: estou nos limites da Carta. Posso decorá-lo: haverá alguma lei que me proíba este exercício de memória? Posso recitá-lo. à luz do Sol ou à luz do gás, com gestos moderados ou com gestos descompostos: tudo isto é legal. Que eu trate no Casino de algum dos pontos de que se ocupa esse livro, proíbem-mo! Concordo em que mo proíbam, mas proíbam também aos livreiros a venda de Proudhon!
Quando se proibiu em França que Renan falasse, obstou-se ao mesmo tempo que Renan fosse lido.
Antes de haver conferências no Casino havia ali cançonetas. Mulheres decotadas até ao estômago, com os braços nus, a pantorrilla ao léu, a boca avinhada, cantavam, entre toda a sorte de gestos desbragados, um repertório de cantigas impuras, obscenas, imundas! Num verso bestial, a um compasso acanalhado, ridicularizava-se aí o pudor, a família, o trabalho, a virgindade, a dignidade, a honra, Deus! Eram também conferências. Eram as conferências do deboche. E havia muitos alunos!
Pois isso que era a obscenidade, a infâmia, a crápula, parecia ao sr. marquês de Ávila compatível com a moral do Estado!
As conferências, que eram o estudo, o pensamento, a crítica, a história, a literatura, essas pareceram ao sr. marquês incompatíveis com toda a moral!
Homens refestelados, bebendo conhaque, gritando, apupando desgraçadas criaturas que se deslocam em trejeitos vis para fazer rir - isso é permitido por todas as leis!
Homens que escutam gravemente uma voz que fala de justiça, de moral, de arte, de civilização - isso é proibido com tanta violência que se salta por cima da Carta para o proibir! a isso manda-se um polícia dar duas voltas à chave! Miserere! Miserere!
Queiroz, Eça de, Uma Campanha Alegre (de «As Farpas»), volume I, Lello & Irmão - Editores, Porto, 1979

A 4ª Conferência do Casino
«o Realismo como nova expressão da arte»

Numa conferência proferida no «Casino» [12 de Junho], disse Eça de Queirós a respeito do Realismo (reconstituição de Antônio Salgado Júnior, História das Conferências do Casino, Lisboa, 1930J páginas 55-56):

«É a negação da arte pela arte; é a proscrição do convencional, do enfático e do piegas. É a abolição da retórica considerada arte de promover a emoção, usando da inchação do período, da epilepsia da palavra, da congestão dos tropos. É a análise com o fito na verdade absoluta. Por outro lado, o realismo é uma reacção contra o romantismo: o romantismo era a apoteose do sentimento; o realismo é a anatomia do carácter, é a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para condenar o que houver de mau na nossa sociedade.»

E, sobre os preceitos a seguir na nova escola, acrescentou o mesmo romancista:

«A norma agora são as narrativas a frio, deslizando como as imagens na superfície de um espelho, sem intromissão do narrador. O romance tem de nos transmitir a natureza em quadros exactíssimos, flagrantes, reais.»

Estas frases do autor d'Os Maias são elucidativas. Aí se encontram as principais características do Realismo, que podemos resumir nas alíneas que seguem.

a) Conteúdo ideológico profundo.

A carga ideológica transportada nas obras românticas não era grande, nem mesmo bem definida. A este vazio se quiseram opor, logo de início, os realistas. O problema aparece bem enunciado na «Questão Coimbrã» por Antero, que pergunta na carta Bom Senso e Bom Gosto : «Será possível viver sem ideias ? Esta é que é a grande questão». E tal problema foi trabalhado, ou pelo menos começou a sê-lo, nas «Conferências do Casino», que, no entender dos seus promotores, deviam expor ao público português «as grandes questões contemporâneas, religiosas, literárias, políticas, sociais e científicas». Proibidas as «Conferências», o aprofundamento ideológico da obra de arte foi ainda a finalidade de muitos artigos d'As Farpas, da poesia de Antero, das obras de Oliveira Martins, etc.
A literatura – era convencimento geral dos realistas – devia inspirar-se nas correntes filosóficas e sociológicas modernas (hegelianismo, positivismo, socialismo) para exprimir a real problemática do homem da época. Só a expressão dessa problemática lhe ofereceria conteúdo ideológico válido.

b) Impassibilidade na análise do real.

Reage a escola realista contra o idealismo e as atitudes emocionais enfáticas e hiperbólicas dos românticos e advoga a análise, síntese e exposição da realidade com verdade e com neutralidade do coração. O «eu» pensante ficará indiferente diante da Natureza, que deve ser recriada com exactidão, com pormenor, em retratos fidelíssimos.
Perante o bem e o mal, o vício e a virtude, o belo e o feio, o coração do escritor realista não deixará transparecer quaisquer emoções. Também não dará nomes belos ao que é imoral e baixo, nem encobrirá as reais consequências do crime, por mais perfeita e apaixonante que tenha sido a sua execução.

c) Crítica social e de costumes.

Cedo se comprometeram os realistas portugueses com a reforma da sociedade. O passado olhavam-no como estéril; o presente sem nada que se lhe aproveitasse. Daí os ataques que começaram a ser lançados d’As Farpas, das Odes Modernas de Antero, dos romances de Eça de Queirós, das obras e Oliveira Martins contra a alta e média burguesia e o clero, contra a política e a literatura do tempo, contra a educação e a economia, etc.
Paralelamente, os realistas descobrem e atacam a imoralidade, os maus costumes. Analisam corajosamente os aspectos baixos da vida, sobretudo os vícios e as taras, não ocultando essas mazelas por mais asquerosas e degradantes que sejam. E, para que a obra literária se revista de cariz científico, esforçam-se por relacionar as causas (biológias e/ou sociais) do comportamento das personagens do romance com o tipo desse mesmo comportamento.
Às vezes, os processos desta crítica moral acabam eles próprios paradoxalmente por fomentar também a imoralidade. Nem sempre são tão inofensivos e construtivos como pretendiam os seus autores. Mas o que desejavam com essa crítica era, sem dúvida, corrigir as pessoas que por ela se viam atingidas como se se olhassem num espelho. Não se lê em Stendhal que «o romance é um espelho que se passeia ao longo de uma estrada»?

d) Técnica narrativa e descritiva perfeita.

Em oposição à retórica e ao hiperbolismo dos românticos, os realistas procuram ver as coisas e os factos dentro dos seus limites naturais e depois recriá-los, narrando ou descrevendo, de maneira que a obra literária não seja mais que um puro reflexo da realidade.
Por isso, usam os escritores a expressão simples, o tom desafectado. São então mestres no desenho, no colorido, na inserção oportuna e significativa do tempo da narração. Deste modo, os lugares, os acontecimentos, as ideias transparecem das suas criações literárias sem esforço, sem convencionalismos, com naturalidade. Simultaneamente cuidam com esmero o aspecto formal da escrita.

Lembramos que o romance romântico é, por vezes, absolutamente verosímil e pode mesmo propugnar uma tese. Mas, na sua base, é todo fruto da imaginação e do sentimentalismo do autor, que, por isso, lança mão de lugares comuns arredados da objectividade: o quimérico e o prodigioso, o ideal e o sentimento, o monstro e o super-homem. Nisto se afasta do romance realista.
Barreiros, António José, HISTÓRIA DA LITERATURA PORTUGUESA, vol. II, 13ª edição, Braga, Livraria Editora Pax, Lda, 1992

Considerações...

Olá!!
Nesses últimos meses andei meio relapsa cm relação ao blog, mas agora voltei à programação normal e estou abrindo o leque de conteúdos não apenas à literatura portuguesa dos períodos referidos no início deste trabalho, mas também a todo e qualquer conteúdo que seja interessante e relevante à Literatura Portuguesa e, se possível, também às Literaturas Africanas de Língua Portuguesa.
Ainda está aberta a possibilidade de, quem desejar, publicar seu ensaio ou artigo no nosso blog, portanto, se quiser, é so entrar em contato comigo!!
beijos

Auto da Alma: Gil Vicente

AUTO DA ALMA
Auto da Alma: O Papel da Igreja na Trajetória da Alma
Elaborado por: Flávio Monteiro, Helena Nunes, Raquel Lisaldo, Telma Tosta / 2006.1
Contexto Histórico:
O Humanismo situa-se na transição da Idade Média para a Renascença, momento em
que o homem reavalia seus conceitos e valores. Ocorre nessa época a passagem do
pensamento teocêntrico, voltado aos assuntos divinos e celestiais, para o pensamento
antropocêntrico, voltado aos valores humanos.
Aconteceram nesse período relevantes transformações socias e econômicas. O
homem torna-se menos dependente de Deus, valoriza o conhecimento humano e sua
capacidade criativa.
Com o declínio do feudalismo, o poder dos reis aumenta. A burguesia encontra-se em
plena ascendência. As grandes navegações fazem com que os países europeus acumulem
riquezas retiradas das novas terras descobertas. Portugal torna-se uma das grandes
potências das viagens ultramarinas.
Gil Vicente:
É o principal nome da literatura dessa época. Sua obra possui um caráter moralizante,
na intenção de reforma social, de restabelecimento dos valores. Gil Vicente é crítico e
eticamente preocupado com os vícios nascidos da nova realidade econômica de Portugal.
A sua obra representa o encontro da herança medieval, sobretudo nos gêneros e na
medida poética (utiliza sistematicamente a métrica popular, em autos e farsas), com o
espírito renascentista de exercício crítico e de denúncia das irregularidades institucionais e
dos vícios da sociedade.
Papel da Igreja no Auto da Alma:
Não é um fato inédito, ou que cause estranheza para a humanidade , o controle do
povo através do temor à Deus e da fé.Gil Vicente também explorou essas vertentes em
seus Autos.
O trabalho de Gil Vicente no “Auto da Alma” converte-se num alerta às almas
“desavisadas” ou “desvirtuadas”, sobre os perigos e as tentações materiais e carnais (na voz
do Diabo), que se devem desviar e combater. A virtude do sacrifício é colocada como
essencial para a preservação, a purificação e a santificação da alma humana, conforme
revelam as falas dos santos e do anjo Custódio:
AUTO DA ALMA
ANJO Alma humana, formada
(...)
Um ponto não esteis parada,
que a jornada
muito em breve é fenecida,
se atentais.
Cabe agora à igreja e aos seus doutores a função de iluminar a alma, até aí
manifestamente obscurecida e contaminada pelo mundo. Assim, a igreja é instituída como
meio, instrumento de salvação das Almas
Em uma das falas de Agostinho, aparece uma espécie de permissão e de alerta à
necessidade de que a Igreja interceda, proteja e cuide para que as almas se mantenham no
caminho reto da virtude, seguindo o projeto divino.
Pode-se perceber, ainda, a colocação da Igreja como “porta-voz oficial” da vontade
de Deus. O exemplo de Cristo aparece invocado também como um chamado ao dever e à
responsabilidade do homem de levar a vida segundo os ensinamentos cristãos.
Concomitante a isso, o Auto da Alma pode ser encarado como um apelo às “almas” para
que morram em nome da propagação da fé, que vivam de forma humilde, pensando na
coletividade e não apenas em si – como ditava o ideal expansionista por excelência, vigente
na época em Portugal - entre outros procedimentos que Cristo adotou quando na terra,
conforme a doutrina católica. Mais adiante, na fala de Agostinho ,a Igreja é eleita a “santa
estalajadeira”, um porto seguro , um abrigo e a “curandeira das mazelas das almas em seus
destinos terrenos”, reiterando a posição paternal do Padre e maternal , dela própria. A
figura do Anjo aparece também, na posição de guia e protetor da Alma , designado por
Deus, como anjo da guarda: uma espécie de “zelador material” das almas fracas e
vacilantes:
A Sua mortal empresa
foi santa estalajadeira
Igreja Madre:
consolar à sua despesa,
nesta mesa,
qualquer alma caminheira,
com o Padre
e o Anjo Custódio aio.
Alma que lhe é encomendada,
se enfraquece
e lhe vai tomando raio
de desmaio,
se chegando a esta pousada,
se guarece.
Mais adiante, a própria alma, parece “passar uma procuração oficial para a Igreja”,
clamando para ser velada e guardada das tentações terrenas, tornando quase legitimo o
constante trabalho de vigilância e de doutrina desenvolvidos pelos nomeados “emissários
da fé” - a Igreja, o Rei, Gil Vicente- configurados como seus auxiliares, uma vez que
estariam zelando pelas salvações das almas:

AUTO DA ALMA

ALMA Anjo que sois minha guarda,
olhai por minha fraqueza
terreal!
de toda a parte haja resguarda,
que não arda
a minha preciosa riqueza
principal.
Cercai-me sempre ò redor
porque vou mui temerosa
de contenda.
Ó precioso defensor
meu favor!
Vossa espada lumiosa
me defenda!
Tende sempre mão em mim,
porque hei medo de empeçar,
e de cair
A todo momento em “O Auto da Alma”, o Anjo tenta manter a alma em um percurso
retilíneo, simbolizado pela correção, de modo que o papel do Anjo, mais uma vez, remete
ao papel atribuído à Igreja : o de resgate, salvação e aconselhamento das almas.
Um refúgio é alcançado pela alma na Santa Madre Igreja. Lá, ela manifesta seu
arrependimento, busca o perdão dos seus pecados, e obtém a salvação pela confissão e pela
penitência da “mais pura e sagrada iguaria” – que é a hóstia - e através do perdão de Deus
concedido pela Santa Igreja:
ANJO Vedes aqui a pousada
verdadeira e mui segura
a quem quer vida.
IGREJA Oh! Como vindes cansada
e carregada!
(...)
ALMA Não sei pera onde vou;
sou selvagem,
sou uma alma que pecou
culpas mortais
(...)
Conheço-me por culpada,
e digo diante vós
minha culpa.
Senhora, quero pousada,
dai passada,
pois que padeceu por nós
quem nos desculpa.
(...)
IGREJA Vinde-vos aqui assentar
mui devagar
que os manjares são guisados
por Deus Padre.
(...)
Pois que Deus a trouxe aqui,
não pereça.

AUTO DA ALMA

Conclusão:
A função da Igreja na trajetória da alma tem em vista a purificação do homem, que
corrompido se afasta de Deus. Cabe à Igreja proteger e cuidar para que a alma não faça o
caminho inverso ao da salvação. A Igreja direciona o homem dizendo o que é lícito,
impondo valores, moralizando e domesticando. A mesma tem, não somente a função de
“iluminar” a alma pecaminosa a fim de que se converta ao “bom caminho” resistindo assim
às tentações carnais e materiais presentes nesse mundo, como também o poder de conceder
perdão das falhas cometidas, levando o homem a um estado de purificação. É mister que a
alma almeje as glórias do porvir e não as desse mundo, visão que se relaciona com a idéia
do sacrifício, tantas vezes reiterada no trabalho Vicentino do Auto da Alma.