31 de ago. de 2008

Bocage e seus poemas eróticos



A fama do português Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805) não se divide apenas em "boa" e "má", isto é, entre a modelar poesia arcádica ou romântica e a malexemplar poesia fescenina: esta mesma é motivo de controvérsia, a partir do ponto em que foi renegada pelo próprio autor. Não vou aqui esmiuçar fatos e versões de fontes e perversões. Limito-me a resgatar, para o sítio poético da POP BOX, a parcela expurgada da produção bocagiana, tal como fiz com as "obras livres" de Laurindo Rabelo, sucessor de Bocage no Brasil. Ao selecionar e anotar os sonetos eróticos do lusitano, não pude, sem embargo, manter-me indiferente a uma hipótese apócrifa que vem incomodando alguns biógrafos e historiadores. Que Bocage era genial não cabe dúvida, como não se desmente a vida devassa que dá respaldo a seus versos. O que intriga o pesquisador é a tendência a atribuir ao maldito obras que ele mesmo admitia serem de outrem, mas que editores e leitores "preferiam" que fossem dele, seja por admiração ou difamação. Hoje não dá para propor revisionismos no que já se tornou lendário. Resta simplesmente registrar algumas autorias, que, se fossem cabalmente restabelecidas, dariam a entender que pelo menos o sonetário pornográfico pertenceria a nomes menos conhecidos, senão obscuros.

Citam-se entre os indícios o fato de que o soneto VI teria sido repudiado por Bocage, sob alegação do tipo "se fosse meu, o verso 8 ficaria assim ou assado" (nota 3); ou o fato de que o soneto XXXII, que já parece requentado em comparação com um anônimo do século anterior (nota 14), figura em certas antologias como assinado pelo Abade de Jazente (vulgo de Paulino António Cabral de Vasconcellos). Mas a mim parece mais interessante verificar que grande parte dos sonetos mais sexualmente descritivos e desreprimidos foi achada num caderno onde, segundo algumas fontes, constava o nome de Pedro José Constâncio, cuja biografia ainda não figura nas enciclopédias e compêndios literários. Além do que vai referido na nota 16, vale acrescentar alguma parca informação sobre esse meu xará de cuja obra Bocage teria se "apropriado".

Irmão dum prestigiado escritor (Francisco Solano Constâncio, autor, entre diversos tratados, duma HISTÓRIA DO BRASIL), o Pedro que também foi Podre morreu, sem completar seus quarenta, antes de 1820 e viveu marginalmente, entre a putaria e a loucura. Ou, como se cita, "Enfermidades geradas pelos excessos venéreos a que se dava, sem escolha nem reserva, o levaram a um estado valetudinário, atrofiando-lhe as faculdades, e tornando-o incapaz de toda a aplicação." Filho dum cirurgião da corte de D. Maria I, chegou a bacharelar-se em cânones pela Universidade de Coimbra, mas só se tem notícia de seu convívio com os poetas contemporâneos (entre os quais Bocage e José Agostinho) justamente porque estes costumavam interceder em seu favor quando era perseguido e punido pelo comportamento anti-social, ou seja, quando era preso por se exibir pelado em público ou por escrever poemas como o soneto XLVIII, que, segundo denúncia ao intendente da polícia, era "licencioso" e alusivo à "fornicação dos cães dentro das igrejas". Entre os poucos poemas de Constâncio que apareceram impressos está o soneto que reproduzo na nota 16, o qual foi (1812) incluído "por engano" pelo editor das obras de Bocage e excluído (1820) na reedição.

Fundamentada ou não, a polêmica sobre os sonetos bocagianos ou constancianos permanece secundária diante do propósito desta seleta, que é introduzir na rede virtual outra pequena parcela do inesgotável "veio subterrâneo" (como dizia José Paulo Paes) da poesia vernácula: a fescenina. Assim pago meu tributo àqueles que me foram antecessores no gênero que escolhi e que levo avante no livro O GLOSADOR MOTEJOSO, no qual pinço alguns dos versos abaixo como motes para as glosas que compus no "martelo agalopado", ou seja, o decassílabo heróico iniciado por pé anapéstico ao invés de jâmbico.

Quase todos os sonetos infra transcritos foram tirados duma edição paulistana (1969), dentre as inúmeras cópias que circulam, mais ou menos clandestinamente, do livro POESIAS ERÓTICAS, BURLESCAS E SATÍRICAS, ao qual me reporto nos pontos assinalados pela expressão "nota da fonte".

São Paulo, janeiro de 2002

GLAUCO MATTOSO

III [SONETO DO MEMBRO MONSTRUOSO]

Esse disforme, e rígido porraz
Do semblante me faz perder a cor:
E assombrado d'espanto, e de terror
Dar mais de cinco passos para trás:

A espada do membrudo Ferrabrás
De certo não metia mais horror:
Esse membro é capaz até de pôr
A amotinada Europa toda em paz.

Creio que nas fodais recreações
Não te hão de a rija máquina sofrer
Os mais corridos, sórdidos cações:

De Vênus não desfrutas o prazer:
Que esse monstro, que alojas nos calções,
É porra de mostrar, não de foder.

V [SONETO AO ÁRCADE FRANÇA]

No canto de um venal salão de dança,
Ao som de uma rebeca desgrudada,
Olhos em alvo, a porra arrebitada,
Bocage, o folgazão, rostia o França. (2)

Este, com mogigangas de criança,
Com a mão pelos ovos encrespada,
Brandia sobre a roxa fronte alçada
Do assanhado porraz, que quer lambança.

Veterana se faz a mão bisonha;
Tanto a tempo meneia, e sua o bicho,
Que em Bocage o tesão vence a vergonha:

Quis vir-me por luxúria, ou por capricho;
Mas em vez de acudir-lhe alva langonha
Rebenta-lhe do cu merdoso esguicho.


(2) "Bocage, o folgazão, rostia o França." Se o soneto foi escrito, como
parece, pouco antes das contendas com os Árcades, isto é, entre os anos
de 1791 e 1793, o França, nascido em 1725, devia então contar os seus 67
de idade! -- "Rostir" é verbo neutro, que em sentido figurado significa
"mastigar". Fazemos aqui esta observação, porque já notamos que alguém
entrou em dúvida acerca da verdadeira inteligência do vocábulo. [nota da
fonte]

[nota de GM] Reparo como os críticos ficam cheios de dedos, relutantes
em admitir qualquer conotação homossexual na poesia de Bocage, ainda que
o poeta, em sonetos como o XV e o xx, não escondesse que um cu masculino
lhe era apetecível. Neste caso, o sentido de "rostir", além de surrar,
esbofetear, roçar, esfregar-se em, bolinar ou mesmo desonrar moralmente,
pode muito bem aludir ao sexo oral ou anal, pouco importando se o tal
França fosse o árcade ou outro mais jovem, já que o objetivo é expor o
satirizado ao ridículo.


VI (3) [SONETO DE TODAS AS PUTAS]

Não lamentes, oh Nise, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putíssimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas têm reinado:

Dido foi puta, e puta d'um soldado;
Cleópatra por puta alcança a c'roa;
Tu, Lucrécia, com toda a tua proa,
O teu cono não passa por honrado:

Essa da Rússia imperatriz famosa,
Que inda há pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre mil porras expirou vaidosa:

Todas no mundo dão a sua greta:
Não fiques pois, oh Nise, duvidosa
Que isso de virgo e honra é tudo peta.

(3) Variante sugerida pelo próprio Bocage para o verso oitavo:
"Não passa o cono teu por cono honrado".

[nota de GM] Este soneto suscitou dúvidas sobre a autoria (que alguns
atribuem a João Vicente Pimentel Maldonado) e inspirou várias paródias,
entre as quais esta:


XIX (9) [SONETO MAÇÔNICO]

Turba esfaimada, multidão canina,
Corja, que tem por deus ou Momo, ou Baco,
Reina, e decreta nos covis de Caco
Ignorância daqui, dali rapina:

Colhe de alto sistema e lei divina
Imaginário jus, com que encha o saco;
Textos gagueja em vão Doutor macaco
Por ouro, que promete alma sovina:

Círculo umbroso de venais pedantes,
Com torpe astúcia de maligna zorra
Usurpa nome excelso, e graus flamantes:

Ora mijei na súcia, inda que eu morra
Corno, arrocho, bambu nos elefantes,
Cujo vulto é de anões, a tromba é porra!

(9) A respeito da origem deste soneto, contou-se-nos que tendo Bocage
sido iniciado em uma das lojas maçônicas, que naquela época existiam em
Lisboa (de que era Venerável Bento Pereira do Carmo, e Orador José
Joaquim Ferreira de Moura, ambos deputados às Cortes de 1821 e 1823, e
bem conhecidos na história política dos nossos tempos modernos)
freqüentara durante alguns meses aquela associação, assistindo às suas
reuniões, até que desavindo-se um dia com os Irmãos por qualquer motivo
que fosse, em um acesso de cólera rompera extemporaneamente neste
soneto, que rasgou depois de escrito; mas alguém o tinha já copiado,
aliás suceder-lhe-ia o mesmo que a tantas outras produções do autor,
irremediavelmente perdidas. Doutor macaco -- José Joaquim Ferreira de
Moura tinha efetivamente uma fisionomia amacacada, e gaguejava algum
tanto, segundo o testemunho dos seus contemporâneos. [nota da fonte]

XXXII (14) [SONETO ASCOROSO]

Piolhos cria o cabelo mais dourado;
Branca remela o olho mais vistoso;
Pelo nariz do rosto mais formoso
O monco se divisa pendurado:

Pela boca do rosto mais corado
Hálito sai, às vezes bem ascoroso; [pronuncia-se "ascroso"]
A mais nevada mão sempre é forçoso
Que de sua dona o cu tenha tocado:

Ao pé dele a melhor natura mora,
Que deitando no mês podre gordura,
Fétido mijo lança a qualquer hora.

Caga o cu mais alvo merda pura:
Pois se é isto o que tanto se namora,
Em ti, mijo, em ti cago, oh formosura!

(14) [nota de GM] Este soneto, às vezes atribuído ao Abade de Jazente,
é, por sua vez, variante dum outro, de autor anônimo do século XVII:

XXXVI (16) [SONETO DAS GLÓRIAS CARNAIS]

Cante a guerra quem for arrenegado,
Que eu nem palavra gastarei com ela;
Minha Musa será sem par canela
Co'um felpudo coninho abraseado:

Aqui descreverei como arreitado
Num mar de bimbas navegando à vela,
Cheguei, propício o vento, à doce, àquela
Enseada d'amor, rei coroado:

Direi também os beijos sussurrantes,
Os intrincados nós das línguas ternas,
E o aturado fungar de dois amantes:

Estas glórias serão na fama eternas
Às minhas cinzas me farão descantes
Fêmeos vindouros, alargando as pernas.

(16) [nota de GM] Este e os próximos sonetos foram transcritos dum
caderno onde estavam misturados aos de Pedro José Constâncio, poeta que
morreu louco, vítima da vida desregrada e dos males venéreos, cujo
estilo e temática, bem semelhantes aos bocagianos, gerou confusões entre
alguns estudiosos, que não conseguiram distinguir uns dos outros. Por
via das dúvidas, o soneto abaixo é com certeza de autoria do meu

lunático xará:

Nenhum comentário: