Carlos Iannone
A vida de Bocage
Bocage viveu numa época em que os poetas se agrupavam em torno de associações literárias denominadas Arcádias. Entretanto, dono de um temperamento irrequieto, polêmico e insatisfeito, Bocage não conseguiu se submeter às normas dessas instituições, renegando-as. Nascido em Setúbal, a 15 de setembro de 1765, Manuel Maria de Barbosa du Bocage, recebeu desde cedo dos pais o maior carinho e o melhor estímulo à educação. Seu pai, José Luís Soares de Barbosa era advogado e exerceu diversos cargos da magistratura. Sua mãe, d. Mariana Joaquina Lestof du Bocage, filha de um vice-almirante francês a serviço da Armada Portuguesa, emprestou-lhe o sobrenome. O casal teve ainda mais cinco filhos: Gil Francisco, que foi jurisconsulto famoso, Ana das Mercês, Maria Agostinha, Maria Eugênia e Maria Francisca, companheira dedicada do poeta e que lhe assistiu os últimos momentos.
Pouco se sabe acerca dos primeiros anos da vida de Bocage. Antes de completar cinco anos, iniciou-se nas primeiras letras. Aos oito anos já lia e escrevia bem e compunha alguns versos. Aos dez anos, órfão de mãe, foi confiado ao professor espanhol d. João de Medina, que lhe ensinou a língua latina. A facilidade com que Bocage sempre interpretou os autores latinos e as traduções que fez atestam o quanto lhe foram úteis os ensinamentos daquele mestre estrangeiro. Com o pai aprendeu francês. Parece que, muitos anos depois, estudou italiano como autodidata, não chegando, porém, a dominar completamente esse idioma.
A primeira namorada de Bocage foi Gertrudes Homem de Noronha, a Gertrúria das seus versos, filha do governador da Torre de Outão, em Setúbal, cuja casa toda a família do poeta freqüentava.
Em setembro de 1781, Bocage assentou praça como soldado no regimento de Setúbal, onde permaneceu até 1783, ano em que se transferiu para a Armada Real. Fez os estudos na Academia Real da Marinha. Nessa altura, Bocage já freqüentava os bares da boêmia lisboeta, granjeando fama como poeta satírico-erótico e como homem de espírito irrequieto.
Em princípios de 1786 conseguiu a patente de guarda-marinha e, em abril, a bordo do navio “Nossa Senhora da Vida, Santo Antônio e Madalena”, embarcou para a Índia, levando em pensamento sua namorada Gertrudes. Entretanto, a mulher que lhe deu a princípio tanta felicidade foi também a responsável por horas de intensa amargura, casando-se com seu irmão Gil. O navio em que Bocage viajou fez escala no Rio de Janeiro, onde o governador Luís de Vasconcelos recebeu-o da melhor maneira possível, relacionando-o com a melhor sociedade da época.
Em outubro de 1786, desembarcou em Goa, na Índia, lá residindo por um espaço de 28 meses. Tentou continuar seus estudos na Aula Real da Marinha, mas por duas vezes foi abrigado a abandonar o curso.
Com a eclosão da Conspiração dos Pintos, que se propunha a subjugar a guarnição portuguesa de Goa e expulsar os europeus, Bocage participou dos combates. Sufocada a rebelião, o poeta foi promovido a tenente de infantaria para o regimento da Praça de Damão, para onde seguiu em 1789. Parece que Bocage detestou Damão. Alguns dias após sua chegada e apresentação no novo regimento, Bocage, em companhia de um alferes endividado, empreendeu fuga. Desertor, embarcou para Macau, mas uma tempestade colheu seu barco, que foi aportar em Catão. Lá, Bocage passou privações e, graças à interferência de um comerciante, conseguiu junto ao governador os meios para regressar a Portugal, chegando em Lisboa, em agosto de 1790.
A notícia do casamento de Gertrudes com seu irmão desilude-o. Bocage entrega-se, então, a uma vida desregrada e boêmia, “fumando e bebendo, numa excitação doentia, numa embriaguez de espírito”. Ganha, contudo, cada vez mais, popularidade como poeta. Em 1791, publicou o primeiro volume das suas poesias, Rimas. Nesse mesmo ano, foi convidado para fazer parte da Academia das Belas-Artes ou Nova Arcádia, instalada na casa do conde de Pombeiro e presidida pelo poeta Domingos Caldas Barbosa. Conforme prezava a sociedade, cada associado deveria ser conhecido por um pseudônimo de origem, sempre que possível, grega. Bocage escolheu para si o de Elmano Sadino. Entretanto permaneceu pouco tempo entre os companheiros árcades. Travou violenta polêmica em versos satíricos com seus ex-colegas da Arcádia. Acusado de “herético perigoso e dissoluto”, após a publicação da epístola Pavorosa Ilusão da Eternidade, inspirada na sua paixão por Maria Margarida, foi obrigado a refugiar-se. Descoberto, foi preso na Cadeia da Corte, em Limoeiro, em 1797, e daí seguiu para os cárceres da Inquisição, de onde saiu, primeiramente, para o Mosteiro de São Paulo e, depois, para o Recolhimento de Nossa Senhora das Necessidades, um tipo de hospício, em 1798. Recorrendo a amigos e suplicando a muitas autoridades e pessoas de influência, obteve clemência por parte da Inquisição e foi posto em liberdade.
Com o desamparo que, de um momento para outro, se encontraram a irmã Maria Francisca e sua sobrinha, Bocage começou a trabalhar, aceitando a função de tradutor de versos de poemas didáticos, oferecida pelo erudito frei José Mariano Veloso.
O abuso do fumo e da bebida levou Bocage à cama, pela primeira vez. Os cuidados de uma família amiga salvaram-no desta primeira enfermidade. Entretanto, onze anos depois, em 1804, caía Manuel Maria doente para nunca mais sarar. A 21 de dezembro de 1805, após quase um ano de sofrimento, assistido pela irmã Maria Francisca, morreu Bocage. “Ao 3.° andar do Terreiro de André Valente subiu gente de todas as categorias sociais, irmanada no mesmo sentimento de pesar. O povo da capital consternou-se e os amigos mais íntimos fizeram-lhe funeral decente. Foi sepultado no Cemitério da Igreja Paroquial da Nossa Senhora das Mercês, no Bairro Alto, a poucos metros da sua residência”, registra Guerreiro Murta.
A obra de Bocage
Bocage, em vida, publicou os Idílios Marítimos (1791) e os três volumes que compõem as Rimas, respectivamente, em 1791, 1799 e 1804. Mais tarde, após a sua morte, saíram mais três volumes de poemas, intitulados Obras Poéticas (1812-1813) e Verdadeiras Inéditas Obras Poéticas (1814). Coube, entretanto, a Inocêncio Francisco da Silva, em 1853, a melhor edição dos poemas bocageanos, reunindo-os em seis volumes sob o título de Poesias. Recentemente, saiu em pequeno volume as Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas de Bocage.
Conhecedor da língua latina com perfeição, teve a oportunidade de traduzir os Fastos, de Ovídio, as Metamorfoses, do mesmo autor, e as Éclogas, de Virgílio. Foi ainda o tradutor, entre outras, das seguintes obras: Os Jardins, de Delille, Eufêmia, de Arnaud, O Consórcio das Flores, epístola de Lacroix, As Plantas, de Castel, A Agricultura, de Rosset, O Conto de Tripoli, de José Francisco Cardoso, História de Paulo e Virgínia, de Bernardin de Saint-Pierre, o primeiro canto de A Columbíada, da sua tia-avó Mariana du Bocage, e a História de Gil Brás, de Santilhana.
Bocage foi poeta satírico e, inegavelmente, o maior poeta lírico do século 18. Improvisador e dono de um temperamento agressivo, Bocage teve tudo para ser um grande poeta satírico. E, na verdade, foi. Soube cultivar, como ninguém, a sátira, deixando versos famosos, como por exemplo a “Pena de Talião”, crítica contundente à figura do clérigo árcade José Agostinho de Macedo. Às vezes, contudo, a sua sátira é delicada e elegante, como acontece no diálogo entre Coridon e Elmano, construído para atacar os versos do capelão da igreja de Almoster, e nos epigramas contra os médicos.
A poesia lírica - amorosa, bucólica e elegíaca - exprimiu-a Bocage em sonetos, odes, cantatas, epístolas, idílios, elegias etc. Em algumas destas espécies, com o seu gênio criador, conseguiu superar as convenções do Arcadismo (ou Neoclassicismo), como por exemplo em “A Morte de Leandro e Hero”, cantata, “que pela sua ambiência especial e contextura dramática e sombria, preludia os novos tempos que se avizinham” (Feliciano Ramos). Em outras, como nos poemas longos, sentimo-lo excessivamente preso ao convencionalismo da escola dos anos setecentos. Por esse motivo, pode-se falar em um Bocage árcade e em um Bocage pré-romântico.
Na fase arcádica (odes, idílios, cantatas e epigramas) a sua poesia caracteriza-se pelo emprego de alegorias e pela presença da mitologia ao gosto clássico: “Olha o Tejo, a sorrir-se! Olha, não sentes / Os Zéfiros brincar por entre as flores?” O bucolismo convencional faz-se presente, com diálogos entre pastores e através da paisagem campesina. Os amores infelizes são uma constante na sua musa. É, sem dúvida alguma, esta fase inferior a que se segue, deixando bastante a desejar “sob o ponto de vista estético, por inadequação da forma poética ao conteúdo: os moldes arcádicos, e sobretudo a linguagem retórica, latinizante e viciada de expressões feitas, atraiçoam a sua mensagem, tão marcadamente pessoal” (Luft).
A segunda fase, pré-romântica, caracteriza-se fundamentalmente por um “libertarismo emocional”, conseqüência da superação das normas impostas pelo movimento arcádico. A poesia bocageana adquire um tom pessoal que se contrapõe à impessoalidade que caracterizava a fase anterior. O amor, o destino, a fatalidade, a solidão, a morte, são os temas preferidos para os seus sonetos e sobre eles medita Bocage. Conforme assinala Massaud Moisés, na sua A Literatura Portuguesa, “tem-se a poesia da confissão, da carpidação, do arrependimento, resultante da contemplação do ‘eu’ a si próprio, numa dor perene, acima de qualquer contingência externa. Aqui, Bocage atinge acentos típicos da mais elevada poesia, pela purificação da sensibilidade, pela tensão dramática, pela sinceridade autobiográfica do sofrimento moral transposto em arte, pela sondagem interior processada quase sem os entraves da consciência, e, por fim, pelo encontro feliz de soluções expressivas que não ficaram totalmente desconhecidas ao longo do século 19”.
Como sonetista, Bocage tem sido considerado um dos três maiores em língua portuguesa, ao lado de Camões e Antero de Quental.
Bocage lírico
A poesia lírica de Bocage apresenta duas vertentes principais: uma, luminosa, etérea, em que o poeta se entrega inebriado à evocação da beleza das suas amadas (Marilia, Jónia, Armia, Anarda, Anália), expressando lapidarmente a sua vivência amorosa torrencial:
"Eu louco, eu cego, eu mísero, eu perdido
De ti só trago cheia, oh Jónia, a mente;
Do mais e de mim ando esquecido."
outra, nocturna, pessimista, depressiva em que manifesta a incomensurável dor que o tolhe, devido à indiferença, à traição, à ingratidão ou à " tirania" de Nise, Armia, Flérida ou Alcina.
Estas assimetrias são um lugar-comum na obra de Bocage, plena de contrários. São ainda o corolário do seu temperamento arrebatado e emotivo. A dialéctica está bem patente nos seus versos:
"Travam-se gosto e dor; sossego e lida...
É lei da Natureza, é lei da Sorte
Que seja o mal e o bem matiz da vida!"
Na sua poética prevalece a segunda vertente mencionada, o sofrimento, o "horror", as "trevas", facto que o faz, com frequência, ansiar pela sepultura, "refúgio me promete a amiga Morte", como afirma nomeadamente.
A relação que tem com as mulheres é também melindrosa, precária. O ciúme "infernal" rouba-lhe o sono, acentua-lhe a depressão.
Bocage considera que a desventura que o oprime é fruto de um destino inexorável, irreversível, contra o qual nada pode fazer. A "Fortuna", a "Sorte", o "Fado", no seu entender, marcaram-no indelevelmente para o sofrimento atroz, como se depreende dos seguintes versos:
"Chorei debalde minha negra sina",
"em sanguíneo carácter foi marcado
pelos Destinos meu primeiro instante".
Outro aspecto relevante a ponderar na avaliação da poesia de Bocage é a dialéctica razão/sentimento. Com efeito, existe um conflito aberto entre a exuberância do amor, também físico, a sua entrega total, e a contenção e a frieza do racional:
"Razão, de que me serve o teu socorro?
Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo;
Dizes-me que sossegue, eu peno, eu morro",
ou ainda quando escreve:
"contra os sentidos a razão murmura".
Bocage viveu num período de transição, conturbado, em convulsão. A sua obra espelha essa instabilidade. Por um lado, reflecte as influências da cultura clássica, cultivando os seus géneros, fazendo apelo à mitologia, utilizando vocabulário genuíno; por outro lado, é um pré-romântico pois liberta-se das teias da razão, extravasa com intensidade tudo o que lhe vai na alma, torrencialmente expressa os seus sentimentos, faz a apologia da solidão.
"Travam-se gosto e dor; sossego e lida...
É lei da Natureza, é lei da Sorte
Que seja o mal e o bem matiz da vida!"
"Chorei debalde minha negra sina",
"em sanguíneo carácter foi marcado
pelos Destinos meu primeiro instante".
"Razão, de que me serve o teu socorro?
Mandas-me não amar, eu ardo, eu amo;
Dizes-me que sossegue, eu peno, eu morro",
"contra os sentidos a razão murmura".
Marília, nos teus olhos buliçosos
Quando Bocage regressou do Oriente, a Revolução Francesa estava no seu auge e constituía um paradigma para muitos intelectuais europeus, que se reviam na trilogia igualdade, fraternidade e liberdade. Estes conceitos libertadores foram universalmente disseminados, tendo desempenhado um papel fundamental na independência dos Estados-Unidos e na eclosão do liberalismo.
Os princípios da Revolução Francesa foram amplamente divulgados através de livros e de folhetos que entravam em Portugal por via marítima, nomeadamente pelos portos de Lisboa e de Setúbal. Mais tarde, eram discutidos pelos cafés de Lisboa, que constituíam locais privilegiados de subversão relativamente ao poder instituído. Este, por sua vez, sob a mão férrea de Pina Manique, teceu uma extensa rede de agentes repressivos que vigiava zelosamente aqueles locais frequentados por apologistas das ideias francesas.
Bocage vivenciou a boémia lisboeta e foi, certamente, um dos dinamizadores de intermináveis discussões políticas e de críticas aceradas ao regime. Tal prática quotidiana esteve na origem do seu encarceramento em 1797, acusado de crime de lesa-majestade. Com efeito, alguns dos seus poemas revelaram-se particularmente críticos para com a sociedade vigente, que se caracterizava pela intolerância e pela recusa dos ideais democráticos. Eis um soneto elucidativo:
"Sanhudo, inexorável Despotismo
Monstro que em pranto, em sangue a fúria cevas,
Que em mil quadros horríficos te enlevas,
Obra da Iniquidade e do Ateísmo:
Assanhas o danado Fanatismo,
Porque te escore o trono onde te enlevas;
Por que o sol da Verdade envolva em trevas
E sepulte a Razão num denso abismo.
Da sagrada Virtude o colo pisas,
E aos satélites vis da prepotência
De crimes infernais o plano gizas,
Mas, apesar da bárbara insolência,
Reinas só no ext'rior, não tiranizas
Do livre coração a independência."
Além das odes à liberdade, Bocage compôs outros poemas que se radicaram no ideário político. Com efeito, fez a apologia de Napoleão, que consolidou a Revolução Francesa, a quem apelidou de "novo redentor da Natureza", criticou a nobreza, manifestou a sua ironia relativamente a um clero que se pautava pela incoerência entre o que apregoava e o que fazia, tendo ainda retratado causticamente classes sociais privilegiadas.
"Sanhudo, inexorável Despotismo
Monstro que em pranto, em sangue a fúria cevas,
Que em mil quadros horríficos te enlevas,
Obra da Iniquidade e do Ateísmo:
Assanhas o danado Fanatismo,
Porque te escore o trono onde te enlevas;
Por que o sol da Verdade envolva em trevas
E sepulte a Razão num denso abismo.
Da sagrada Virtude o colo pisas,
E aos satélites vis da prepotência
De crimes infernais o plano gizas,
Mas, apesar da bárbara insolência,
Reinas só no ext'rior, não tiranizas
Do livre coração a independência."
Arguto observador da sociedade, Bocage foi a consciência crítica de uma ordem social que se encontrava em profunda mutação. Neste contexto, não surpreende que tenha cultivado a sátira, género que estava em sintonia com a sua personalidade e que servia integralmente os seus desígnios de carácter reformador.
As sátiras de Bocage tiveram como alvo, entre outros, a "Nova Arcádia", associação de escritores incentivada por Pina Manique. Nela se praticava o elogio mútuo, sendo a produção poética de pouca qualidade e estritamente de acordo com os cânones clássicos.
A rivalidade entre Bocage e alguns dos poetas que constituíam aquela academia, rapidamente se tornou um lugar comum das sessões dirigidas por Domingos Caldas Barbosa, escritor e músico oriundo do Brasil, que foi particularmente visado na sátira bocageana. Sucederam-se, então, os ataques pessoais em quadra ou em soneto, alguns dos quais se caracterizaram por uma extrema violência. José Agostinho de Macedo, o temido "Padre Lagosta", Belchior Curvo Semedo, Luís França Amaral, entre outros, foram severamente retratados por Bocage, que por sua vez sofreu impiedosos ataques daqueles árcades. Eis um soneto cáustico de Bocage, evocativo de uma sessão da "Nova Arcádia":
"Preside o neto da rainha Ginga
À corja vil, aduladora, insana.
Traz sujo moço amostras de chanfana,
Em copos desiguais se esgota a pinga.
Vem pão, manteiga e chá, tudo à catinga;
Masca farinha a turba americana;
E o oragotango a corda à banza abana,
Com gesto e visagens de mandinga.
Um bando de comparsas logo acode
Do fofo Conde ao novo Talaveiras;
Improvisa berrando o rouco bode.
Aplaudem de contínuo as frioleiras
Belmiro em ditirambo, o ex-frade em ode.
Eis aqui de Lereno as quartas-feiras."
A crítica acutilante de Bocage estendeu-se também ao clero. Em causa estava a incoerência daquela classe social, que apregoava do púlpito a virtude e tinha uma prática quotiana que se encontrava exactamente nos antípodas. Por outro lado, o poeta manifestou-se sempre contra uma concepção fundamentalista da religião, que tinha como pedra de toque o medo e o castigo eterno. Eis uma quadra satírica atribuída a Bocage, que visa o clero:
"Casou-se um bonzo da China
Com uma mulher feiticeira
Nasceram três filhos gémeos
Um burro, um frade e uma freira."
Outros sectores da sociedade foram também fustigados pela pena de Bocage. Com efeito, a nobreza, os médicos, os tabeliães, bem como alguns tipos sociais encontram-se retratados na sua obra.
"Preside o neto da rainha Ginga
À corja vil, aduladora, insana.
Traz sujo moço amostras de chanfana,
Em copos desiguais se esgota a pinga.
Vem pão, manteiga e chá, tudo à catinga;
Masca farinha a turba americana;
E o oragotango a corda à banza abana,
Com gesto e visagens de mandinga.
Um bando de comparsas logo acode
Do fofo Conde ao novo Talaveiras;
Improvisa berrando o rouco bode.
Aplaudem de contínuo as frioleiras
Belmiro em ditirambo, o ex-frade em ode.
Eis aqui de Lereno as quartas-feiras."
"Casou-se um bonzo da China
Com uma mulher feiticeira
Nasceram três filhos gémeos
Um burro, um frade e uma freira."
"Mais doce é ver-te de meus ais vencida
Dar-me em teus brandos olhos desmaiados
Morte, morte de amor, melhor que a vida"
O erotismo tem sido cultivado com alguma frequência na literatura portuguesa. Encontramo-lo, por exemplo, nas "Cantigas de Escárnio e Mal-dizer", no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, em Gil Vicente, em Camões cujo canto IX dos Lusíadas nos dá um fresco dos prazeres dos nautas portugueses inebriados por mil sereias.
No presente século, Fernando Pessoa, curiosamente nos seus English Poems, Mário de Sá-Carneiro, Guerra Junqueiro, António Botto, Melo e Castro, Jorge de Sena, entre muitos outros, celebraram nos seus escritos os rituais de Eros.
No século XVIII prevalecia um puritanismo limitador. Com efeito, era difícil uma pessoa assumir-se integralmente, de corpo e alma. Tabus sociais, regras estritas, uma educação preconceituosa, a moral católica tornavam a sexualidade uma vertente menos nobre do ser humano. Por outro lado, uma censura férrea mutilava indelevelmente os textos mais ousados e a omnipresente Inquisição demovia os recalcitrantes. Em presença desta conjuntura, ousar trilhar a senda do proibido, transgredir era, obviamente, um apelo inexorável para os escritores, uma maneira salutar de se afirmarem na sua plenitude, um imperativo categórico.
Em Bocage, a transgressão foi pedra de toque, o conflito generalizado. As suas críticas aceradas aos poderosos, a determinados tipos sociais, ao novo-riquismo, à mediocridade, à hipocrisia, aos literatos, o seu anti-clericalismo convicto, a apologia dos ideais republicanos que sopravam energicamente de França, a agitação que disseminava pelos botequins e cafés de Lisboa, o tipo de vida , "pouco exemplar" para os vindouros e para os respeitáveis chefes de família e a sua extrema irreverência tiveram como corolário ser considerado subversivo e perigoso para a sociedade.
Poder-se-á afirmar que a poesia erótica de Bocage adquiriu uma dimensão mais profunda do que a que foi composta anteriormente. Pela primeira vez, é feito um apelo claro e inequívoco ao amor livre. A "Pavorosa Ilusão da Eternidade - Epístola a Marília", constitui uma crítica contundente ao conceito de um Deus castigador, punitivo e pouco sensível ao sofrimento da humanidade - à revelia dos ideais cristãos - que grande parte do clero perfilhava; mas também consubstancia um acto de subversão na medida em que convida Marília "à mais velha cerimónia do mundo", independentemente da moral vigente e dos valores cristalizados. Estava, à luz dos conceitos da época, de certa maneira, a minar as bases da sociedade, pondo em causa a própria família.
O referido poema, bem como o seu estilo de vida, estiveram na origem do seu encarceramento, por ordem irreversível de Pina Manique, irrepreensível guardião da moral e dos costumes da sociedade. A prisão do Limoeiro, os cárceres da Inquisição, o Mosteiro de S. Bento e o Hospício das Necessidades, por onde sucessivamente passou para ser "reeducado", não o demoveram da sua filosofia de vida, estuante de liberdade, interveniente, pugnando pela justiça, assumindo-se integralmente, ferindo os sons da lira em demanda do apuro formal que melhor veiculasse as suas legítimas preocupações.
Só cerca de cinquenta anos após o falecimento de Bocage, foram publicados pela primeira vez as suas poesias eróticas. Corria o ano de 1854 e apareceram na sequência da publicação criteriosa das obras completas, em 6 volumes, pelo emérito bibliógrafo Inocêncio da Silva. Para evitar a sua apreensão e os tribunais, a obra saiu clandestinamente, sem editor explícito e com um local de edição fictício na capa: Bruxellas. Este facto de se não referir o editor foi prática comum até à implantação da República. Embora feitas em Portugal, anonimamente, as Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas apresentaram como local de edição sucessivamente Bruxellas (1860, 1870, 1879, 1884, 1899, 1900), Bahia (1860, 1861), Rio de Janeiro (1861), Cochinchina (1 885), Londres (1900), Paris (1901, 1902, 1908, 1908), Amsterdam (1907) e Leipzig (1 907). Malhas que a implacável censura tecia...
As Cartas de Olinda a Alzira - que constituem um caso inédito na literatura portuguesa, pois são um relato das primícias sexuais de uma jovem, na primeira pessoa, como assinala Alfredo Margarido - por sua vez, são dadas à estampa nos finais do século passado com as precauções proverbiais: sem a menção da data, editor, local ou organizador.
Com o advento da República, a liberdade de expressão, grosso modo, foi uma realidade. Estavam reunidas as condições objectivas e subjectivas para a Guimarães Editores assumir a publicação de Olinda e Alzira, em 1915.
Nos anos que se seguiram ao 28 de Maio de 1926, mais concretamente durante o consulado de Salazar, a censura foi reinstalada e a poesia erótica de Bocage voltou à clandestinidade, fazendo parte do índex de livros proibidos. Circulava sub-repticiamente, em edições anónimas, teoricamente feitas em "London", apresentando as datas de 1926 ou 1964.
Coincidiu com a primavera marcelista, nos finais da década de 60, a publicação das obras completas de Bocage, superiormente dirigida por Hernâni Cidade. Em edição de luxo, a editorial Artis, fascículo a fascículo, foi estampando toda a obra poética. O último volume contemplava as poesias eróticas. Num prefácio bem tecido, aquele biógrafo justificava a sua inclusão, fazendo notar a tradição do erotismo na poesia portuguesa, mencionando inclusivamente mulheres que, sem falsos pudores, analisaram esta problemática, caso concreto de Carolina Michaêlis, "que às riquezas do espírito altíssimo juntava os tesouros do coração modelar de esposa e mãe." O facto desta obra ser vendida por fascículos e consequentemente não estar acessível ao grande público nas livrarias, bem como as razões aduzidas por Hernâni Cidade, terão convencido os ciosos censores.
Com o 25 de Abril, têm-se sucedido as edições, sem a preocupação de um estudo introdutório que perspectiva o erotismo na obra de Bocage. O lucro fácil prevaleceu em detrimento da verdade literária. Tendo em consideração que Bocage deixou muito poucos autógrafos manuscritos dada a sua proverbial dispersão, não se pode ter a certeza relativamente à autoria de algumas poesias eróticas que circulam como se do poeta fossem. Com efeito, a primeira edição da sua poesia erótica, dada à luz em 1854, terá sido publicado a partir de um caderno manuscrito que incluía cópias de composições de vários autores anónimos. Umas serão certamente do seu estro poético, outras, está provado hoje em dia, foram compostas por Pedro José Constâncio, Sebastião Xavier Botelho, Abade de Jazente e João Vicente Pimentel Maldonado. Porém, de imediato, foram identificados como se da pena de Bocage tivessem saído, pois a sua fama de libertino era marcante na época.
Curioso é ainda o facto de essas composições continuarem a fazer parte do corpo das edições das Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas que se publicam nos tempos que correm. É urgente fazer-se uma análise estilística - tarefa de extrema dificuldade - e identificar-se, na medida do possível, os poemas que são da autoria de Bocage, os que poderão eventualmente sê-lo e retirar ou colocar em apêndice os que manifestamente não lhe pertencem.
Uma vertente menos conhecida da obra de Bocage é, indesmentivelmente, a tradução. Com efeito, os seus biógrafos só muito levemente focaram esta sua intensa actividade. Bocage possuía uma sólida formação clássica. Na adolescência aprendeu latim com um padre espanhol, Don Juan Medina. Mais tarde, na sequência da morte da mãe, teve como mestre alguém pouco sensível aos atributos da persuasão, como o próprio Bocage evocava:
"Se continuo mais tempo, aleija-me."
O escritor beneficiava ainda do facto de ser de origem francesa, língua que, consequentemente, dominava com maestria.
A primeira tradução de que há notícia remonta ao ano de 1793. Porém, só a partir de 1800 enveredou por uma actividade sistemática como tradutor. Coincide esta opção com um período de sedentarização de Bocage, cuja saúde se encontrava prematura e seriamente minada, e com um convite de José Mariano Velloso, director da famosa, pelas suas exemplares estampas, Tipografia Calcográfica do Arco do Cego.
Em 1800, foi dado à luz o livro de Delille Os Jardins ou a Arte de Afformosear as Paisagens, vertido para a língua portuguesa por Bocage. Esta publicação foi pretexto para os seus múltiplos adversários fazerem violentos reparos à sua tradução.
O poeta respondeu-lhes contundentemente, um ano depois, no prólogo do livro de Ricardo Castel As Plantas. Apelida-os de "aves sinistras", "corvos de inveja", "malignos", "maldito, grasnador, nocturno enxame que voar não podendo, odeia os voos", "zoilos", entre outros epítetos pouco lisonjeiros.
Nos ataques viscerais que Bocage sofreu, distinguiu-se José Agostinho de Macedo, arqui-inimigo desde a "Arcádia Lusitana", que subscreveu a composição "Sempre, oh Bocage, as sátiras serviram..." Pulverizando a argumentação do seu opositor, Elmano compôs a célebre sátira Pena de Talião, segundo reza a tradição, de um só fôlego, sob extrema emotividade. A polémica entre ambos foi alimentada por diversas vezes, até 1805, data do falecimento de Bocage, havendo, porém, a registar a reconciliação entre ambos, pouco antes do infausto desenlace. Reacendeu-se, porém, mais tarde quando os seus discípulos se envolveram com José Agostinho de Macedo, fazendo-lhe acusações gravosas, ao que parece fundamentadas.
Da autoria de Bocage é a tradução dos seguintes livros: "Eufemia ou o Triunfo da Religião de Arnaud (1793), As Chinelas de Abu-Casem: Conto Arabico (1797), Historia de Gil Braz de Santilhana de Le Sage (1798), Os Jardins ou Arte de Afformosear as Paisagens de Delille (1800), Canto Heroico sobre as Façanhas dos Portugueses na Expedição de Tripoli (1800) e Elegia ao lllustrissimo (...) D. Rodrigo de Sousa Coutinho (1800) ambos da autoria do poeta brasileiro José Francisco Cardoso, As Plantas de Ricardo Castel (1801), O Consórcio das Flores: Epistola de La Croix (1801), Galathéa (1802) de Florian, Rogerio e Victor de Sabran ou o Tragico Effeito do Ciume (1802) e Ericia ou a Vestal (1805) de Arnaud.
Postumamente foi publicada a tradução de Paulo e Virginia de Bernardin de Saint-Pierre. Corria o ano de 1905 e foi lançada no âmbito da comemoração do primeiro centenário do falecimento de Bocage. O autógrafo manuscrito pertencera a Camilo Castelo Branco que o ofereceu ao editor Lello; este, por sua vez, doou-o à Biblioteca Municipal do Porto, onde se encontra, neste momento, depositado.
Nas suas traduções, Bocage contemplou os clássicos - Ovídio, Horácio, Virgílio, Alceu, Tasso - bem como autores modernos, Voltaire, La Fontaine, entre outros.
A maneira cuidada como o poeta empreendeu as suas traduções é-nos descrita por ele próprio no prólogo a Os Jardins ou Arte de Afformosear as Paizagens: " ... lhe apresento esta versão, a mais concisa, a mais fiel, que pude ordená-la, e em que só usei o circunlóquio dos lugares, cuja tradução literal se não compadecia, a meu ver, com a elegância, que deve reinar em todas as composições poéticas.
Registe-se ainda o facto de Bocage se manifestar ostensivamente contra o uso de galicismos que enxameavam a nossa língua.
Um comentário:
Bom trabalho, Liliane. Parabéns. Eu não realço tanto uma oposição dualista da faceta etérea luminosa e a sombria. Considero-o mesmo um espiritualista muito rico de ensinamentos. No Youtube está grande parte da minha intervenção no recente Congresso de Bocage e as Luzes do séc. XVIII. Boas inspirações
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